É realmente curioso ver o materialismo falar incessantemente da necessidade de elevar a dignidade do homem, quando se esforça para reduzi-lo a um pedaço de carne que apodrece e desaparece sem deixar qualquer vestígio; de reivindicar para si a liberdade como um direito natural, quando o transforma num mecanismo, marchando como um boneco, sem responsabilidade por seus atos.
Não dizemos nada de novo aos nossos irmãos em crença, nem aos adversários, dizendo que o Espiritismo invade todas as camadas da sociedade. As duas cartas aqui citadas têm por objetivo principal pôr em relevo a similitude de sentimentos que a doutrina suscita nos pólos extremos da escala social, em indivíduos que não têm nenhum contacto, que jamais vimos e que, nada obstante, se encontram no mesmo terreno, sem outro guia a não ser a leitura das obras. Um é um dignitário do império russo, e o outro um simples pastor da Touraine.
Eis a primeira das cartas:
Senhor,
Desde 23 de outubro último formou-se em nossa cidade um grupo espírita sob a proteção do apóstolo São Pedro. Olhando-vos, senhor, como nosso mestre em Espiritismo, considero um dever, como presidente deste grupo, vos dar esta informação.
O objetivo principal que nos propomos é o alivio dos Espíritos sofredores, encarnados e desencarnados. Temos duas reuniões por semana. Procuramos atingir a unidade de pensamento; e para a alcançar, cada um dos assistentes, durante toda a sessão, guarda o mais recolhido silêncio, e quando a pergunta é feita aos Espíritos é lida em voz alta e cada um de nós mentalmente pede a seu anjo protetor a ajuda a fim de obter uma resposta verdadeira. Em nossas evocações, lidando o mais das vezes com Espíritos de ordem inferior, Espíritos obsessores e conhecendo, pela experiência, a eficácia da prece em comum, a ela quase sempre recorremos para esclarecer e aliviar esses infelizes. Nosso grupo possui muitos médiuns, mas ordinàriamente só dois ou três escrevem em cada sessão. Temos, além disso, um médium auditivo e vidente, e um magnetizador. Prometem-nos um médium desenhista; mas, nunca o tendo visto, não posso apreciar sua faculdade. Nosso grupo já se compõe de quarenta membros.
Há várias outras reuniões espíritas em São Petersburgo, mas não possuem regulamentos. Nosso grupo é o primeiro regularmente organizado e esperamos que, com a ajuda de Deus, nosso exemplo seja seguido.
Tenho satisfação em poder dizer-vos que, enfim, apareceu a primeira brochura espírita na Rússia, impressa em São Petersburgo, com autorização da censura: é minha resposta um artigo que o arcipreste Sr. Debolsky inseriu no jornal Radougaf (Arco-íris). Até agora nossa censura não permitia publicar artigos senão contra, mas nunca pró Espiritismo. Pensei que a melhor refutação fosse a tradução de vossa brochura O Espiritismo em sua expressão mais simples, que fiz inserir naquele jornal.
Permiti-me, senhor, vos dirigir as comunicações mais importantes que pudermos obter, sobretudo as que vierem em apoio da verdade e da sublimidade de nossa doutrina?
Tende a bondade de aceitar, etc.
General A. de B...
A atitude desse grupo, o objetivo todo de caridade a que se propõem, são as melhores provas que o Espiritismo ali é compreendido em sua verdadeira essência e encarado por seu lado mais sério e mais eminentemente prático; nada de curiosidade, de pedidos fúteis, mas a aplicação da doutrina no que tem de mais elevado. Uma pessoa que assistiu a muitas dessas reuniões nos disse que a gente fica edificado com a seriedade, o recolhimento e o sentimento de verdadeira piedade que as presidem.
A carta que segue não nos foi escrita, mas ao presidente de um dos grupos espíritas de Tours. Transcrevemo-la literalmente, salvo a ortografia, que foi corrigida.
Caro senhor Rebondin e Irmão em Deus,
Perdoai, caro senhor, se tomo a liberdade de vos escrever. Já há muito tempo tinha a intenção de o fazer, para vos agradecer a boa acolhida que me deste o ano passado, proporcionando-me o prazer de assistir duas vezes às vossas sessões. Sem dúvida nao vos lembrais de mim; mas vou dizer-vos quem sou. Vim ver-vos com meu antigo patrão, Sr. T...; eu era seu pastor há onze anos; hoje ele acaba de se casar e os parentes da esposa, percebendo que eu me ocupava de Espiritismo que, segundo eles, é um estudo diabólico, fizeram tanto que ele teve que nos deixar. Sofri muito com esta separação, caro senhor, mas quero seguir as máximas de nossa santa doutrina; meu dever é orar por todos os infelizes que ofendem o nosso divino Mestre de todos.
Faço todos os esforços, desde que conheci a doutrina, para fazer adeptos; se encontrei obstáculos, tive a satisfação de ter conduzido muitas pessoas ao conhecimento do Espiritismo, que explica todas as provações que sofremos nesta terra de amarguras e misérias. Oh! como é doce ser Espírita e praticar suas virtudes! Para mim é minha única felicidade. Vós, caro senhor, o mais devotado à santa causa, espero não me recusareis um lugar em vosso coração. Sou feliz por vos conhecer, acolhestes-me tão bem! Eis duas vezes que fui a Tours, com meus dois amigos, que estudam o Espiritismo, com intenção de assistir às vossas sessões, mas soube que as sessões não se realizam aos domingos. Tende a bondade de me dizer se vos reunis sempre nesse dia e permitir que me reúna a vós, com os meus amigos, a fim de participarmos em nosso bem espiritual. Dar-nos-eis a maior felicidade. Conto com a vossa amizade e sou, esperando o dia em que serei tão feliz por estarmos reunidos para praticar o amor e a caridade.
Vosso amigo, que vos ama, saúda fraternalmente,
Pierre Houdée, pastor
Vê-se que não é preciso um diploma para compreender a doutrina. É que, mau grado seu alto alcance, ela é tão clara e tão lógica que chega sem esforço a todas inteligências, condição sem a qual nenhuma idéia pode popularizar-se. Toca o coração: eis o seu maior segredo, e há um coração no peito do operário, como no do grão-senhor. O grande, como o pequeno, tem suas dores, suas amarguras, suas feridas morais, para as quais pede bálsamo e consolações que, um e outro, encontram na certeza do futuro, porque um e outro são iguais na dor e ante a morte, que tanto ferem o rico quanto o pobre. Duvidamos muito que se chegue a dar à doutrina do demônio e das chamas eternas bastante atrativo para a suplantar. Esse mesmo pastor fazia muitas vezes, após o seu dia de trabalho, duas léguas para ir a Tours assistir a uma reunião espírita, e outras duas para voltar. Quando falamos do alto alcanceda doutrina e das consolações que ela proporciona, falamos uma linguagem incompreendida para os que julgam que o Espiritismo esteja inteiramente nas mesas girantes, ou num fenômeno mais ou menos autêntico, que reúne curiosos, mas que é perfeitamente entendido por quem quer que tenha parado na superfície e não se tenha referido aos diz-que-diz, e cujo número é grande. (Publicado na Revista Espírita de junho de 1865)