DOUTRINA DOS ANJOS DECAÍDOS E DA PERDA DO PARAÍSO
43. Os mundos progridem, fisicamente, pela elaboração da matéria e, moralmente, pela depuração dos Espíritos que os habitam. A felicidade aí está na razão direta da predominância do bem sobre o mal, e a predominância do bem é o resultado do adiantamento moral dos Espíritos. O progresso intelectual não basta, pois que com a inteligência podem eles fazer o mal.
Quando, pois, um mundo chega a um de seus períodos de transformação, que o deve fazer ascender na hierarquia, mutações se operam na sua população encarnada e desencarnada; é então que se dão as grandes emigrações e imigrações (nos 34 e 35). Os que, apesar da sua inteligência e do seu saber, perseveraram no mal, em sua revolta contra Deus e suas leis, seriam daí em diante um entrave para o progresso moral ulterior, uma causa permanente de perturbação para a tranquilidade e a felicidade dos bons, é por isso que eles serão daí excluídos e enviados a mundos menos avançados; lá eles aplicarão sua inteligência e a intuição de seus conhecimentos adquiridos ao progresso daqueles entre os quais são chamados a viver, ao mesmo tempo que expiarão, numa série de existências penosas e por um árduo trabalho, suas faltas passadas e seu endurecimento voluntário.
Que serão eles entre essas populações, para eles novas, ainda na infância da barbárie, senão anjos ou Espíritos decaídos, enviados em expiação? A terra de onde foram expulsos não é para eles um paraíso perdido? Não era para eles um lugar de delícias, em comparação com o meio ingrato onde vão se encontrar relegados durante milhares de séculos, até ao dia em que tenham merecido sua libertação? A vaga lembrança intuitiva que conservam da terra donde vieram é para eles uma longínqua miragem que os faz lembrar o que perderam por sua negligência.
44. Mas, ao mesmo tempo que os maus partem do mundo em que habitavam, são substituídos por Espíritos melhores, mesmo vindos de um mundo menos avançado, que mereceram deixar, e para os quais sua nova morada é uma recompensa. Assim renovada e depurada a população espiritual dos seus piores elementos, ao cabo de algum tempo o estado moral do mundo se encontra melhorado.
Essas mutações são às vezes parciais, isto é, circunscritas a um povo, a uma raça; doutras vezes são gerais, quando o período de renovação chega para o globo.
45. A raça adâmica apresenta todos os caracteres de uma raça proscrita; os Espíritos que a integram foram exilados para a Terra, já povoada, mas de homens primitivos, imersos na ignorância, que aqueles tiveram por missão fazer progredir, levando-lhes as luzes de uma inteligência desenvolvida. Não é esse, com efeito, o papel que essa raça há desempenhado até hoje? Sua superioridade intelectual prova que o mundo de onde saíram era mais avançado que a Terra; mas devendo aquele mundo entrar numa nova fase de progresso, e não tendo tais Espíritos querido, pela sua obstinação, colocar-se à altura, lá estariam deslocados e teriam sido um entrave à marcha providencial das coisas; por isso eles foram excluídos, enquanto outros mereceram substituí-los.
Relegando aquela raça para esta terra de labor e de sofrimentos, teve Deus razão para lhe dizer: “Dela tirarás teu alimento com o suor da tua fronte”. Na sua mansuetude, prometeu-lhe que lhe enviaria um Salvador, isto é, aquele que deveria lhe esclarecer sobre a rota a seguir para sair desse lugar de miséria, desse inferno, e conquistar a felicidade dos eleitos. Esse Salvador, Deus lhes enviou na pessoa do Cristo, que ensinou a lei de amor e caridade desconhecia para eles, e que devia ser a verdadeira âncora de salvação.
É igualmente com vistas a fazer que a Humanidade avance num determinado sentido que Espíritos superiores, sem as qualidades do Cristo, encarnam de tempos a tempos na Terra para aí desempenhar missões especiais, proveitosas, ao mesmo tempo, ao seu adiantamento pessoal, se as cumprirem segundo os desígnios do Criador.
46. Sem a reencarnação, a missão do Cristo seria um contra-senso, assim como a promessa feita por Deus. Suponhamos, com efeito, que a alma de cada homem seja criada no nascimento de seu corpo, e que ela não faça mais do que aparecer e desaparecer da Terra; nenhuma relação haveria entre as que vieram desde Adão até Jesus-Cristo, nem entre as que vieram depois; todas são todas estranhas umas às outras. A promessa feita por Deus, de um Salvador, não se poderia aplicar aos descendentes de Adão, se suas almas ainda não estavam criadas. Para que a missão do Cristo correspondesse às palavras de Deus, era preciso que pudessem ser aplicadas às mesmas almas. Se essas almas são novas, não podem estar maculadas pela falta do primeiro pai, que é apenas o pai carnal e não pai espiritual; a não ser assim, Deus houvera criado almas marcadas com uma falta que não podia deixar nelas vestígio, pois que elas não existiam. A doutrina vulgar do pecado original implica então, na necessidade de uma relação entre as almas do tempo do Cristo e as do tempo de Adão; e, por conseguinte a reencarnação.
Dizei que todas essas almas faziam parte da colônia de Espíritos exilados na Terra ao tempo de Adão, e que se achavam manchadas pelos vícios que lhes ocasionou a expulsão de um mundo melhor, e tereis a única interpretação racional do pecado original, pecado próprio a cada indivíduo, e não resultado da responsabilidade pela falta de um outro a quem jamais conheceram; dizei que essas almas ou Espíritos renascem diversas vezes na Terra, na vida corporal, para progredir e se depurar; que o Cristo veio esclarecer essas mesmas almas, não somente para suas vidas passadas, mas para suas vidas ulteriores, e só então dareis à sua missão um sentido real e sério, aceitável pela razão.
47. Um exemplo familiar, tocante por sua analogia, fará compreender ainda melhor os princípios expostos.
A 24 de maio de 1861, a fragata Ifigênia transportou para a Nova Caledônia uma companhia disciplinar composta de 291 homens. O comandante da colônia dirigiu-lhes, à sua chegada, uma ordem do dia assim concebida:
“Pondo os pés nesta terra longínqua, já haveis compreendido o papel que vos está reservado.
“A exemplo de nossos bravos soldados da marinha que servem sob as vossas vistas, nos ajudareis a levar com brilho o archote da civilização ao seio das tribos selvagens da Nova Caledônia. Não é uma bela e nobre missão, eu vos pergunto? Vós a cumprireis dignamente.
“Escutai a voz e os conselhos dos vossos chefes. Estou à frente deles; que minhas palavras sejam bem endendidas.
“A escolha do vosso comandante, dos vossos oficiais, dos vossos suboficiais e cabos constitui garantia segura de que todos os esforços serão tentados para fazer de vós excelentes soldados; digo mais, para vos elevar à altura de bons cidadãos e vos transformar em colonos honrados, se o desejardes.
Vossa disciplina é severa; e deve ser. Colocada em nossas mãos, ela será firme e inflexível, sabei-o bem; como também, justa e paternal, saberá distinguir o erro do vício e da degradação...”
Eis então homens expulsos, pela sua má conduta, de um país civilizado, e enviados, por punição, para o meio de um povo bárbaro. Que lhes diz o chefe? - “Infringistes as leis do vosso país; nele vos tornastes causa de perturbação e escândalo e de lá fostes expulsos; mandam-vos para aqui, mas aqui podeis resgatar o vosso passado; podeis, pelo trabalho, criar-vos aqui uma posição honrosa e tornar-vos cidadãos honestos. Tendes uma bela missão a cumprir: levar a civilização entre essas tribos selvagens. A disciplina será severa, mas justa, e nós saberemos distinguir os que se conduzirem bem. Tendes nas mãos a vossa sorte; podeis melhorá-la, se desejardes, porque tendes vosso livre-arbítrio.”
Para esses homens relegados ao seio da selvajaria, a mãe-pátria não é um paraíso perdido por suas próprias faltas e por sua rebelião contra a lei? Nessa terra distante, não são eles anjos decaídos? A linguagem do chefe não é a que Deus fez ouvir aos Espíritos exilados na Terra: “Desobedecestes as minhas leis e por isso eu vos expulsei do mundo onde podíeis viver ditosos e em paz. Aqui, sereis condenados ao trabalho; mas podereis, por vossa boa conduta, merecer vosso perdão e reconquistar a pátria que perdestes por vossa incúria, isto é, o Céu”?
48. À primeira vista, a idéia de degradação parece em contradição com o princípio segundo o qual os Espíritos não podem retrogradar; porém, é preciso considerar que não se trata de um retorno ao estado primitivo; o Espírito, ainda que numa posição inferior, nada perde do que adquiriu; seu desenvolvimento moral e intelectual é o mesmo, qualquer que seja o meio em que se encontre. Ele está na posição do homem do mundo condenado à prisão por seus delitos; é certo que ele está degradado, decaído, do ponto de vista social, mas não se torna nem mais estúpido, nem mais ignorante.
49. Creríamos agora que esses homens enviados para a Nova Caledônia vão se transformar subitamente em modelos de virtude? Que vão abjurar repentinamente seus erros passados? Fora necessário não conhecer a Humanidade para o supor. Pela mesma razão, os Espíritos da raça adâmica, uma vez transplantados para a terra de exílio, não se despojaram instantaneamente do seu orgulho e de seus maus instintos; ainda por muito tempo eles conservaram as tendências de sua origem, um resto do velho fermento; ora, não é esse o pecado original?
Quando, na Revue Spirite de janeiro de 1862, publicamos um artigo sobre a interpretação da doutrina dos anjos decaídos, apresentamos essa teoria como simples hipótese, sem outra autoridade afora a de uma opinião pessoal controversível, porque nos faltavam então elementos bastantes para uma afirmação peremptória. Expusemo-la a título de ensaio, tendo em vista provocar o exame da questão, decidido, porém, a abandoná-la ou modificá-la, se fosse preciso. Presentemente, essa teoria já passou pela prova do controle universal. Não só foi bem aceita pela maioria dos espíritas, como a mais racional e a mais concorde com a soberana justiça de Deus, mas também foi confirmada pela generalidade das instruções que os Espíritos deram sobre o assunto. O mesmo se verificou com a que concerne à origem da raça adâmica.