APELO DE CÁRITA
Escrevem-nos de Lyon:
“... O Espiritismo, esse grande traço de união entre todos os filhos de Deus, nos abriu um horizonte tão largo, que podemos olhar de um a outro ponto todos esses corações esparsos que as circunstâncias colocaram no oriente e no ocidente, e vê-los vibrar a um só apelo de Cárita. Ainda me lembro da profunda emoção que senti quando, no ano passado, a Revista Espírita nos dava conta da impressão produzida em todas as partes da Europa por uma comunicação desse excelente Espírito. Sem dúvida poder-se-á dizer tudo quanto se queira contra o Espiritismo: é uma prova de que ele cresce, porque geralmente não se atacam as coisas pequenas, mas os grandes efeitos. Ademais, o que são esses ataques senão como a cólera de uma criança que atirasse pedras ao oceano para impedi-lo de roncar? E os detratores do Espiritismo quase não suspeitam que denegrindo a doutrina, eles cobrem todas as despesas de uma propaganda que dá a todos os que a leem vontade de conhecer esse terrível inimigo que tem como palavra de ordem: “Fora da caridade não há salvação...”
Esta carta estava acompanhada da seguinte comunicação, ditada pelo Espírito de Cárita, a eloquente e graciosa pedinte que os bons corações conhecem tão bem.
(Lyon, 8 de novembro de 1865)
“Faz frio, chove, o vento sopra muito forte; abri-me!
“Fiz uma longa caminhada através da região da miséria e retorno com o coração semimorto e as espáduas vergadas ao fardo de todas as dores. Abri-me bem depressa, meus amados, vós que sabeis que quando a caridade bate à vossa porta é que encontrou muitos infelizes em seu caminho. Abri vosso coração para receber minhas confidências; abri a vossa bolsa para enxugar as lágrimas dos meus protegidos e escutai-me com essa emoção que a dor faz subir de vossa alma aos vossos lábios. Oh! vós que sabeis o que Deus reserva, e que muitas vezes chorais essas lágrimas de amor que o Cristo chamava de orvalho da vida celeste, abri-me!... Obrigada! Eu entrei.
“Parti esta manhã. Chamavam-me de todos os lados, e o sofrimento tem a voz tão vibrante que basta um só apelo. Minha primeira visita foi para dois pobres velhos: marido e mulher. Eles viveram ambos esses longos dias em que o pão rareia, em que o sol se esconde, em que o trabalho falta aos braços fortes que o chamam. Eles sepultaram sua miséria no crisol da dignidade, e ninguém pôde adivinhar que muitas vezes o dia transcorria sem trazer seu pão cotidiano. Depois chegou a idade, os membros enfraqueceram, os olhos ficaram velados e o patrão que fornecia trabalho disse: Nada mais tenho para fazer. Entretanto, a morte não veio, e a fome e o frio diariamente são os visitantes habituais da pobre morada. Como responder a essa miséria? Proclamando-a? Oh! não. Há feridas que não se curam arrancando a atadura que as cobre. O que acalma o coração é uma palavra de consolo, dita por uma voz amiga que adivinhou, com sua alma, o que lhe foi oculto aos olhos. Para esses pobres, abri-me!
“E depois vi uma mãe repartir seu único pedaço de pão com os três filhinhos, e como o pedaço era minúsculo, nada guardou para si. Vi o fogão apagado, o leito sem lençóis; vi os membros tiritantes envolvidos em trapos; vi o marido entrar em casa sem ter encontrado trabalho; vi enfim o filho menor morrer sem socorro, porque o pai e a mãe são espíritas e tiveram que sofrer humilhações das obras de beneficência.
“Vi a miséria em toda a sua chaga horrível; vi os corações se atrofiarem e a dignidade extinguir-se sob o verme roedor da necessidade de viver. Vi criaturas de Deus renegarem sua origem imortal, porque não compreendiam a provação. Vi, enfim, o materialismo crescer com a miséria e em vão exclamei:
Abri-me! Eu sou a caridade. Venho a vós com o coração cheio de ternura. Não choreis mais, eu venho vos consolar. Mas o coração dos infelizes não me escutou, pois suas entranhas tinham muita fome!
“Então aproximei-me de vós, meus bons amigos, de vós que me escutastes; de vós que sabeis que Cárita é a mendiga para os pobres e vos disse: Abri-me!
“Acabo de vos contar o que vi em minha longa jornada e vos peço, tende para os meus pobres um pensamento, uma palavra, uma suave lembrança, a fim de que à noite, à hora da prece, eles não adormeçam sem agradecer a Deus, porque vós lhes sorristes de longe. Sabeis que os pobres são a pedra de toque que Deus envia à Terra para experimentar vossos corações. Não os repilais, a fim de que um dia, quando tiverdes transposto o sólio que conduz ao espaço, Deus vos reconheça pela pureza dos vossos corações e vos admita na morada dos eleitos!
CÁRITA”
É com felicidade que nos fazemos intérpretes da boa Cárita e esperamos que ela não tenha dito em vão: Abri-me! Se ela bate à porta com tanta insistência, é que o inverno, por sua vez, também aí bate.