TERCEIRO DIÁLOGO – O PADRE
Um abade – Permiti-me, senhor, de, por minha vez, dirigir-vos algumas questões?
A. K. – De bom grado, senhor; mas antes de vos responder, creio ser útil dar-vos a conhecer o terreno sobre o qual pretendo colocar-me convosco.
Devo primeiro declarar-vos que não buscarei, de maneira alguma, convertê-lo às nossas ideias. Se quiserdes conhecê-las em detalhes, vós as encontrareis nos livros onde estão expostas; neles podereis estudá-las à vontade e sereis livre para aceitá-las ou rejeitá-las.
O Espiritismo tem como objetivo combater a incredulidade e suas funestas consequências, dando provas patentes da existência da alma e da vida futura; dirige-se, portanto, àqueles que em nada creem ou que duvidam, e o número desses é grande, vós o sabeis; aqueles que têm uma fé religiosa e a quem esta fé basta, não precisam dele. Àquele que diz: “Creio na autoridade da Igreja e me atenho ao que ela ensina, sem buscar nada além”, o Espiritismo responde que não se impõe a ninguém e não vem forçar nenhuma convicção.
A liberdade de consciência é uma consequência da liberdade de pensar, que é um dos atributos do homem; o Espiritismo estaria em contradição com seus princípios de caridade e tolerância se não a respeitasse. Aos seus olhos, toda crença, quando sincera e quando não leva o indivíduo a prejudicar seu próximo, é respeitável, ainda que errônea. Se alguém tivesse sua consciência comprometida a crer, por exemplo, que é o Sol que gira, nós lhe diríamos: Crede-o se isso vos apraz, porque isso não impedirá a Terra de girar; mas, assim como não buscamos violentar vossa consciência, não busqueis violentar a dos outros. Se de uma crença, inocente em si mesma, fazeis um instrumento de perseguição, ela se torna nociva e pode ser combatida.
Tal é, senhor abade, a linha de conduta que tenho mantido com os ministros dos diversos cultos que se dirigiram a mim. Quando me questionaram sobre alguns pontos da doutrina, dei-lhes as explicações necessárias, abstendo-me de discutir certos dogmas dos quais o Espiritismo não tem que se preocupar, pois cada um é livre em sua apreciação; porém, nunca os procurei com o intuito de abalar sua fé por uma pressão qualquer. Aquele que vem a nós como um irmão, nós o recebemos como irmão; aquele que nos repele, nós o deixamos tranquilo. Esse é o conselho que não cesso de dar aos espíritas, pois nunca aprovei aqueles que se atribuem a missão de converter o clero. Sempre lhes disse: Semeai no campo dos incrédulos, pois aí há uma ampla colheita a ser feita.
O Espiritismo não se impõe, porque, como já disse, respeita a liberdade de consciência; ele sabe, aliás, que toda crença imposta é superficial e só dá as aparências da fé, mas não a fé sincera. Ele expõe seus princípios aos olhos de todos, de modo que cada um possa formar uma opinião com conhecimento de causa. Aqueles que os aceitam, padres ou laicos, o fazem livremente e porque os consideram racionais, e não guardamos rancor daqueles que não são da nossa opinião. Se há luta hoje entre a Igreja e o Espiritismo, temos a consciência de não tê-la provocado de maneira alguma.
O Padre – Se a Igreja, ao ver surgir uma nova doutrina, encontra nela princípios que, em sua consciência, acredita dever condenar, contestai-lhe o direito de discuti-los e combatê-los, de premunir os fiéis contra o que ela considera erros?
A. K. – De maneira alguma contestamos um direito que reclamamos para nós mesmos. Se ela se tivesse mantido dentro dos limites da discussão, nada melhor; mas lede a maioria dos escritos emanados de seus membros ou publicados em nome da religião, dos sermões que foram pregados; vereis neles a injúria e a calúnia transbordando de todos os lados, os princípios da doutrina indignadamente e maldosamente desfigurados por toda parte. Não se ouviu do alto do púlpito seus adeptos serem qualificados de inimigos da sociedade e da ordem pública? Aqueles que por sua doutrina foram reconduzidos à fé, não foram anatematizados e rejeitados pela Igreja por ela entender que é melhor ser incrédulo do que crer em Deus e na alma pelo Espiritismo? Não se lamentou não se poder acender para eles as fogueiras da Inquisição? Em certas localidades, não se incitou contra eles a animosidade de seus concidadãos, até fazê-los perseguidos e insultados nas ruas? Não se ordenou a todos os fiéis que fugissem deles como da peste, dissuadindo os domésticos de entrarem em seu emprego? Mulheres não foram solicitadas a separar-se de seus maridos, e maridos de suas mulheres por causa do Espiritismo? Não se fez empregados perderem seus cargos, não se retirou de operários o pão do trabalho e dos desgraçados o da caridade, porque eram espíritas? Até mesmo cegos não foram expulsos de certos hospitais, porque não quiseram abjurar à sua crença? Diga-me, senhor abade, trata-se de uma discussão leal? Os espíritas retribuíram a injúria com a injúria, o mal com o mal? Não. A tudo eles opuseram a calma e a moderação. A consciência pública já lhes fez a justiça de reconhecer que eles não foram os agressores.
O Padre – Todo homem sensato deplora esses excessos; mas a Igreja não pode ser responsável pelos abusos cometidos por alguns de seus membros pouco esclarecidos.
A. K. – Concordo; mas são membros pouco esclarecidos os príncipes da Igreja? Vede a pastoral do bispo de Argel e algumas outras. Não foi um bispo que ordenou o auto-de-fé de Barcelona? A autoridade eclesiástica superior não tem todo o poder sobre seus subordinados? Se, pois, ela tolera sermões indignos do púlpito evangélico, se ela favorece a publicação de escritos injuriosos e difamatórios contra uma classe de cidadãos, se não se opõe às perseguições exercidas em nome da religião, é porque os aprova. Em resumo, a Igreja, ao repelir sistematicamente os espíritas que a ela retornavam, forçou-os a se fecharem em si mesmos; pela natureza e violência de seus ataques, ela ampliou a discussão e a levou a um novo terreno. O Espiritismo era apenas uma simples doutrina filosófica; foi a própria Igreja que o elevou ao apresentá-lo como um inimigo temível; foi ela finalmente que o proclamou uma nova religião. Foi uma falta de habilidade, mas a paixão não raciocina.
Um livre pensador – Proclamastes há pouco a liberdade de pensamento e de consciência e declarastes que toda crença sincera é respeitável. O materialismo é uma crença como qualquer outra; por que não gozaria da liberdade que acordais a todas as outras?
A. K. – Cada um é certamente livre para crer no que lhe agrada, ou não crer em coisa alguma, e não escusaríamos menos uma perseguição contra aquele que acredita no nada após a morte do que contra um cismático de qualquer religião. Ao combater o materialismo, não atacamos os indivíduos, mas sim uma doutrina que, se inofensiva para a sociedade quando se restringe à consciência de pessoas esclarecidas, torna-se uma praga social quando se generaliza.
A crença de que tudo termina para o homem após a morte, que toda a solidariedade cessa com a vida, o leva a considerar o sacrifício do bem-estar presente em benefício de outrem como uma tolice; daí a máxima: Cada um por si durante a vida, pois não há nada além. A caridade, a fraternidade, a moral, em suma, não têm nenhuma base ou razão de ser. Por que se incomodar, se constranger, privar-se hoje se, amanhã talvez, não existiremos mais? A negação do porvir, a simples dúvida sobre a vida futura, são os maiores estimulantes do egoísmo, fonte da maioria dos males da humanidade. É preciso uma grande virtude para ser contido no declive do vício e do crime, sem outro freio senão a força da própria vontade. O respeito humano pode deter o homem do mundo, mas não aquele para quem o medo da opinião é nulo.
A crença na vida futura, mostrando a perpetuidade das relações entre os homens, estabelece entre eles uma solidariedade que não se detém no túmulo; ela muda assim o curso das ideias. Se essa crença fosse apenas um espantalho, não duraria muito tempo; mas como sua realidade é um fato adquirido pela experiência, é dever propagá-la e combater a crença contrária, no interesse mesmo da ordem social. É o que faz o Espiritismo e o faz com sucesso, porque dá provas e, em definitiva, o homem prefere ter a certeza de viver e poder viver feliz em um mundo melhor, em compensação pelas misérias deste mundo, do que crer estar morto para sempre. O pensamento de ver-se para sempre aniquilado, de crer que seus filhos e os seres queridos estão perdidos para sempre, agrada a um número muito pequeno, crede-me; é por isso que os ataques dirigidos contra o Espiritismo em nome da incredulidade têm tão pouco sucesso e não o abalaram nem um pouco.
O Padre – A religião ensina tudo isso; até agora ela tem sido suficiente; então por que a necessidade de uma nova doutrina?
A. K. – Se a religião é suficiente, por que há tantos incrédulos, religiosamente falando? A religião nos ensina isso, é verdade; ela nos diz para crer, mas há tanta gente que não acredita sob palavra! O Espiritismo prova e mostra o que a religião ensina pela teoria. Ademais, de onde vêm essas provas? Da manifestação dos Espíritos. Ora, é provável que os Espíritos só se manifestem com a permissão de Deus; portanto, se Deus, em sua misericórdia, envia aos homens este socorro para tirá-los da incredulidade, é uma impiedade rejeitá-lo.
O Padre – No entanto, não podeis negar que o Espiritismo não está em todos os pontos de acordo com a religião.
A. K. – Meu Deus, senhor abade, todas as religiões dirão o mesmo: os protestantes, os judeus, os muçulmanos, assim como os católicos.
Se o Espiritismo negasse a existência de Deus, da alma, de sua individualidade e de sua imortalidade, das penas e das recompensas futuras, do livre-arbítrio do homem; se ensinasse que cada um está aqui na Terra apenas para si mesmo e não deve pensar senão em si próprio, seria não apenas contrário à religião católica, mas a todas as religiões do mundo; seria a negação de todas as leis morais, bases das sociedades humanas. Longe disso; os Espíritos proclamam um Deus único, soberanamente justo e bom; eles dizem que o homem é livre e responsável por seus atos, recompensado e punido de acordo com o bem ou o mal que fez; colocam acima de todas as virtudes a caridade evangélica e esta regra sublime ensinada pelo Cristo: Agir para com os outros como gostaríamos que agissem para conosco. Não são estes os fundamentos da religião? Os Espíritos fazem mais: nos iniciam nos mistérios da vida futura, que para nós não é mais uma abstração, mas uma realidade, porque são aqueles mesmos que conhecemos que vêm nos descrever sua situação, dizer-nos como e por que sofrem ou são felizes. Que há aí de antirreligioso? Essa certeza do futuro, de reencontrar a quem se amou, não será uma consolação? Essa grandiosidade da vida espiritual que é nossa essência, comparada às mesquinhas preocupações da vida terrestre, não é capaz de elevar nossa alma e nos encorajar ao bem?
O Padre – Concordo que, para as questões gerais, o Espiritismo está em conformidade com as grandes verdades do Cristianismo; mas o mesmo se dá do ponto de vista dos dogmas? Ele não contradiz certos princípios que a Igreja nos ensina?
A. K. – O Espiritismo é antes de tudo uma ciência e não se preocupa com questões dogmáticas. Essa ciência tem consequências morais, como todas as ciências filosóficas; tais consequências são boas ou más? Pode-se julgar pelos princípios gerais que acabo de relembrar. Algumas pessoas se enganaram sobre o verdadeiro caráter do Espiritismo. A questão é bastante grave para merecer alguns desenvolvimentos.
Citemos primeiro uma comparação: A eletricidade estando na natureza, existiu desde sempre e, em todos os tempos também produziu os efeitos que conhecemos e muitos outros que ainda não conhecemos. Os homens, ignorando a causa verdadeira, explicaram esses efeitos de maneira mais ou menos bizarra. A descoberta da eletricidade e de suas propriedades derrubou uma série de teorias absurdas ao lançar luz sobre mais de um mistério da natureza. O que a eletricidade e as ciências físicas em geral fizeram por certos fenômenos, o Espiritismo o faz por fenômenos de outra ordem.
O Espiritismo é fundado sobre a existência de um mundo invisível, formado por seres incorpóreos que povoam o espaço e que não são outros senão as almas daqueles que viveram na Terra ou em outros globos onde deixaram seu envoltório material. São esses seres aos quais damos o nome de Espíritos. Tais seres, que nos rodeiam incessantemente, exercem uma grande influência sobre os homens, à revelia destes; desempenham um papel muito ativo no mundo moral e, até certo ponto, no mundo físico. Portanto, o Espiritismo está na natureza, e podemos dizer que, em uma certa ordem de ideias, é uma potência, como a eletricidade o é de um outro ponto de vista, como também a gravitação é uma outra. Os fenômenos cuja fonte é o mundo invisível, devem pois ter-se produzido e com efeito se produziram em todos os tempos; eis porque a história de todos os povos os menciona. No entanto, em sua ignorância, como em relação à eletricidade, os homens atribuíram esses fenômenos a causas mais ou menos racionais e deram a esse respeito livre curso à sua imaginação.
O Espiritismo, melhor observado desde que se vulgarizou, vem lançar luz sobre uma série de questões até agora insolúveis ou mal compreendidas. Seu verdadeiro caráter é, pois, o de uma ciência, e não de uma religião; a prova disso é que conta entre seus adeptos homens de todas as crenças, que não renunciaram por isso às suas convicções: católicos fervorosos que não praticam menos todos os deveres de seu culto, quando não são repelidos pela Igreja, protestantes de todas as seitas, israelitas, muçulmanos e até budistas e bramanistas. Portanto, ele tem por base princípios independentes de toda questão dogmática. Suas consequências morais vão no sentido do Cristianismo, porque o Cristianismo é, de todas as doutrinas, a mais esclarecida e a mais pura; é por essa razão que, de todas as seitas religiosas do mundo, os cristãos são os mais aptos a compreendê-lo em sua verdadeira essência. Pode-se censurá-lo por isso? Certamente cada um pode fazer de suas opiniões uma religião, interpretar como queira as religiões conhecidas, mas daí à constituição de uma nova Igreja a distância é grande.
O Padre – No entanto, não fazeis as evocações segundo uma fórmula religiosa?
A. K. – Certamente as evocações e as nossas reuniões são feitas com um sentimento religioso, mas não há fórmula sacramental; para os Espíritos, o pensamento é tudo e a forma nada é. Nós os chamamos em nome de Deus, porque cremos em Deus e sabemos que nada se faz neste mundo sem sua permissão; e que, se Deus não permitir que venham, eles não virão; procedemos em nossos trabalhos com calma e recolhimento, porque esta é uma condição necessária para as observações e, em segundo lugar, porque conhecemos o respeito que se deve àqueles que não vivem mais na Terra, seja sua condição feliz ou infeliz no mundo dos Espíritos; fazemos um apelo aos bons Espíritos, porque, sabendo que existem bons e maus, queremos que esses últimos não se intrometam fraudulentamente às comunicações que recebemos. O que tudo isso prova? Que não somos ateus, mas isso não implica absolutamente que sejamos religionários.
O Padre – Pois bem! O que dizem os Espíritos superiores no tocante à religião? Os bons devem nos aconselhar, nos guiar. Suponhamos que eu não tenha nenhuma religião e queira escolher uma. Se eu lhes peço: “aconselhais-me a me tornar católico, protestante, anglicano, quaker, judeu, islamita ou mórmon?” O que eles responderão?
A. K. – Há dois pontos a considerar nas religiões: os princípios gerais, comuns a todas, e os princípios particulares a cada uma. Os primeiros são aqueles dos quais falamos a pouco: esses todos os Espíritos os proclamam, qualquer que seja a sua categoria. Quanto aos segundos, os Espíritos vulgares, sem serem maus, podem ter preferências, opiniões; podem preconizar tal ou tal forma. Podem, pois, encorajar a certas práticas, seja por convicção pessoal, seja porque conservaram as ideias da vida terrestre, seja por prudência, para não assustar as consciências timoratas. Credes, por exemplo, que um Espírito esclarecido, sendo mesmo Fénelon, ao dirigir-se a um maometano, diria inabilmente que Maomé é um impostor e que ele será condenado se não se tornar cristão? Ele não faria isso, porque seria repelido.
Os Espíritos superiores em geral, e quando não são solicitados por nenhuma consideração especial, não se preocupam com questões de detalhe; limitam-se a dizer: “Deus é bom e justo; ele só quer o bem; a melhor de todas as religiões é, pois, aquela que ensina apenas o que é conforme à bondade e à justiça de Deus; que dá de Deus a ideia mais grandiosa, a mais sublime, e não o rebaixa lhe atribuindo as mesquinharias e as paixões da humanidade; é aquela que torna os homens bons e virtuosos e lhes ensina a se amarem todos como irmãos; que condena todo mal feito ao próximo; que não autoriza a injustiça sob qualquer forma ou pretexto que seja; que não prescreve nada contrário às leis imutáveis da natureza, pois Deus não pode se contradizer; aquela cujos ministros dão o melhor exemplo de bondade, de caridade e de moralidade; aquela que melhor tende a combater o egoísmo e que menos lisonjeia o orgulho e a vaidade dos homens; aquela, enfim, em nome da qual menos se comete o mal, pois uma boa religião não pode ser o pretexto de um mal qualquer: ela não deve deixar-lhe nenhuma porta aberta, nem diretamente, nem por interpretação. Vede, julgai e escolhei.”
O Padre – Suponho que certos pontos da doutrina católica sejam contestados pelos Espíritos que considerais superiores; suponho mesmo que tais pontos sejam errôneos; aquele para quem eles são, com ou sem razão, artigos de fé, que os pratica em consequência, essa crença pode ser, segundo esses mesmos Espíritos, prejudicial à sua salvação?
A. K. – Certamente não, se essa crença não o desvia de fazer o bem, se ao contrário o incita a fazê-lo; enquanto a crença mais bem fundada obviamente o prejudicará, se for para ele uma ocasião de fazer o mal, de faltar com a caridade para com o próximo; se o torna duro e egoísta, porque então não age segundo a lei de Deus, e Deus vê o pensamento antes dos atos. Quem ousaria sustentar o contrário?
Pensais, por exemplo, que um homem que cresse perfeitamente em Deus e que, em nome de Deus, cometesse atos inumanos ou contrários à caridade, tal fé lhe seria muito proveitosa? Não será ele tanto mais culpado quanto mais meios tem de se esclarecer?
O Padre – Assim, o católico fervoroso que cumpre escrupulosamente os deveres de seu culto não é censurado pelos Espíritos?
A. K. – Não, se for para ele uma questão de consciência, e se o faz com sinceridade; sim, mil vezes sim, se for por hipocrisia, e se houver nele apenas aparência de piedade.
Os Espíritos superiores, aqueles que têm por missão o progresso da humanidade, se levantam contra todos os abusos, de qualquer natureza que sejam, que possam retardar esse progresso, e quaisquer que sejam os indivíduos ou as classes da sociedade que deles tirem proveito. Ora, não negareis que a religião nem sempre foi isenta disso; se, entre seus ministros, há aqueles que cumprem sua missão com um devotamento todo cristão, que a tornam grande, bela e respeitável, convireis que nem todos compreenderam sempre a santidade de seu ministério. Os Espíritos buscam deter o mal onde quer que ele esteja; denunciar os abusos da religião é atacá-la? Ela não tem inimigos maiores do que aqueles que os defendem, pois são tais abusos que fazem pensar que alguma coisa melhor pode substitui-la. Se a religião corresse qualquer perigo, seria preciso ater-se àqueles que dão dela uma falsa ideia, transformando-a em arena das paixões humanas e a exploram em proveito de sua ambição.
O Padre – Dizeis que o Espiritismo não discute os dogmas, no entanto ele admite certos pontos combatidos pela Igreja, tais como, por exemplo, a reencarnação, a presença do homem na Terra antes de Adão; ele nega a eternidade das penas, a existência de demônios, o purgatório e o fogo do inferno.
A. K. – Esses pontos têm sido discutidos há muito tempo, e não foi o Espiritismo que os questionou; são opiniões, algumas das quais são controvertidas mesmo pela teologia e que o futuro julgará. Um grande princípio a todos domina: a prática do bem, que é a lei superior, a condição sine qua non do nosso futuro, como no-lo prova o estado dos Espíritos que conosco se comunicam. Enquanto a luz não se faz para vós sobre essas questões, credes, se quiserdes, nas chamas e nas torturas materiais, se essa crença pode impedir-vos de fazer o mal: isso não as tornará mais reais, se elas não existem. Credes, se isso vos agrada, que só temos uma existência corporal: isso não vos impedirá de renascer aqui ou alhures, malgrado vosso, se assim deve ser; acrediteis que o mundo foi criado inteiro em seis vezes vinte e quatro horas, se é sua opinião: isso não impedirá a terra de levar em suas camadas geológicas a prova do contrário; credes, se quiserdes, que Josué deteve o Sol: isso não impedirá a Terra de girar; credes que o homem está na Terra há apenas 6.000 anos: isso não impedirá os fatos de mostrarem a impossibilidade disso. E o que direis se, um belo dia, essa inexorável geologia vier a demonstrar, por traços patentes, a anterioridade do homem, como demonstrou tantas outras coisas? Credes pois em tudo o que quiserdes, até mesmo no diabo, se essa crença pode vos tornar bom, humano e caridoso com vossos semelhantes. O Espiritismo, como doutrina moral, impõe apenas uma coisa: a necessidade de fazer o bem e de não fazer mal. É uma ciência de observação que, repito, tem consequências morais, e essas consequências são a confirmação e a prova dos grandes princípios da religião; quanto às questões secundárias, ele as deixa à consciência de cada um.
Notai bem, senhor, que o Espiritismo não contesta em princípio alguns dos pontos divergentes dos quais acabastes de falar. Se tivésseis lido tudo o que escrevi sobre esse assunto, teríeis visto que ele se limita a dar-lhes uma interpretação mais lógica e mais racional do que aquela que se lhes dá vulgarmente. É assim, por exemplo, que ele não nega o purgatório; ao contrário, demonstra sua necessidade e justiça; e faz mais, ele o define. O inferno foi descrito como uma imensa fornalha; mas é assim que o entende a alta teologia? Evidentemente não; ela diz muito bem que é uma figura; que o fogo com o qual se queima é um fogo moral, símbolo das maiores dores.
Quanto à eternidade das penas, se fosse possível fazer uma votação para conhecer a opinião íntima de todos os homens em estado de raciocinar ou compreender, mesmo entre os mais religiosos, veríamos de que lado está a maioria, porque a ideia de uma eternidade de suplícios é a negação da infinita misericórdia de Deus.
De resto, eis o que a doutrina espírita diz sobre isso:
A duração do castigo é subordinada à melhora do Espírito culpado. Nenhuma condenação por um tempo determinado é pronunciada contra ele. O que Deus exige para pôr fim aos sofrimentos é o arrependimento, a expiação e a reparação, em uma palavra, um melhoramento sério, efetivo e um retorno sincero ao bem. O Espírito é assim o árbitro do seu próprio destino; ele pode prolongar seus sofrimentos por seu endurecimento no mal, amenizá-los ou abreviá-los por seus esforços para fazer o bem.
A duração do castigo sendo subordinada ao arrependimento, resulta que o Espírito culpado que nunca se arrependesse e jamais se melhorasse, sofreria sempre, e que, para ele, a pena seria eterna. A eternidade das penas deve, pois, ser entendida no sentido relativo e não no sentido absoluto.
Uma condição inerente à inferioridade dos Espíritos é não ver o fim da sua situação e acreditar que sofrerão sempre; isso é para eles um castigo. Todavia, desde que sua alma se abre ao arrependimento, Deus lhes faz entrever um raio de esperança.
Esta doutrina é evidentemente mais conforme à justiça de Deus, que pune enquanto se persiste no mal e que concede graça quando se entra no bom caminho. Quem a imaginou? Nós? Não; são os Espíritos que a ensinam e a provam pelos exemplos que colocam diariamente diante de nossos olhos.
Portanto, os Espíritos não negam as penas futuras, pois descrevem seus próprios sofrimentos; e este quadro nos toca mais do que o das chamas perpétuas, porque tudo nele é perfeitamente lógico. Compreende-se que isso é possível, que deve ser assim, que esta situação é uma consequência natural das coisas; pode ser aceita pelo pensador filósofo, porque nada nele repugna à razão. Eis porque as crenças espíritas têm levado ao bem uma multidão de pessoas, até mesmo materialistas, que o medo do inferno, tal como nos é pintado, não os havia detido.
O Padre – Admitindo vosso raciocínio, não pensais que o vulgo precisa de imagens mais marcantes do que uma filosofia que ele não pode compreender?
A. K. – Está aí um erro que levou mais de um ao materialismo, ou pelo menos desviou mais de um homem da religião. Chega um momento em que essas imagens não impressionam mais, e então as pessoas que não se aprofundam, ao rejeitar uma parte, rejeitam o todo porque dizem a si mesmas: Se me ensinaram como verdade incontestável um ponto que é falso, se me deram uma imagem, uma figura para a realidade, quem me diz que o resto é mais verdadeiro? Se, ao contrário, a razão, ao crescer, nada rejeita, a fé se fortalece. A religião ganhará sempre ao seguir o progresso das ideias; se um dia ela periclitar, é porque os homens teriam avançado e ela teria ficado para trás. É enganar-se de época acreditar que se pode hoje conduzir os homens pelo medo do demônio e das torturas eternas.
O Padre – A Igreja, com efeito, reconhece hoje que o inferno material é uma figura; mas isso não exclui a existência dos demônios; sem eles, como explicar a influência do mal que não pode vir de Deus?
A. K. – O Espiritismo não admite os demônios no sentido vulgar da palavra, mas admite os maus Espíritos que não são melhores e que fazem muito mal suscitando maus pensamentos; apenas diz que não são seres à parte, criados para o mal e perpetuamente destinados ao mal, uma espécie de párias da criação e carrascos do gênero humano; são seres atrasados, ainda imperfeitos, mas aos quais Deus reserva o futuro. Nisto ele está de acordo com a Igreja católica grega que admite a conversão de Satã, alusão à melhora dos maus Espíritos. Observai ainda que a palavra demônio só implica a ideia de Espírito mau pela acepção moderna que lhe foi dada, porque o termo grego daimôn significa gênio, inteligência. Como quer que seja, hoje é tomado apenas pelo lado mau. Ora, admitir a comunicação dos maus Espíritos é reconhecer em princípio a realidade das manifestações. A questão é saber se são os únicos que se comunicam, como afirma a Igreja para motivar a proibição que faz de se comunicar com os Espíritos. Aqui invocamos o raciocínio e os fatos. Se os Espíritos, sejam quais forem, se comunicam, não é senão pela a permissão de Deus; seria compreensível que ele permitisse apenas aos maus? Como! enquanto deixaria a estes toda liberdade de virem enganar os homens, ele proibiria os bons de virem fazer contrapeso, de neutralizar as doutrinas perniciosas daqueles? Crer que é assim, não seria duvidar de seu poder e de sua bondade e fazer de Satã um rival da Divindade? A Bíblia, o Evangelho, os Pais da Igreja reconhecem perfeitamente a possibilidade de comunicação com o mundo invisível, e deste mundo os bons não são excluídos; por que então o seriam hoje? Ademais, a Igreja, ao admitir a autenticidade de certas aparições e comunicações de santos, exclui por isso mesmo a ideia de que só se pode ter relações com os maus Espíritos. Certamente, quando as comunicações contêm apenas boas coisas, quando nelas se prega apenas a moral evangélica mais pura e mais sublime, a abnegação, o desinteresse e o amor ao próximo; quando se condena o mal, qualquer que seja a cor de seu disfarce, é racional acreditar que o Espírito maligno venha assim atacar a si mesmo?
O Padre – O Evangelho nos ensina que o anjo das trevas, ou Satã, se transforma em anjo de luz para seduzir os homens.
A. K. – Satã, segundo o Espiritismo e a opinião de muitos filósofos cristãos, não é um ser real; é a personificação do mal, como outrora Saturno era a personificação do tempo. A Igreja toma à letra essa figura alegórica; é uma questão de opinião que não discutirei. Admitamos, por um instante, que Satã seja um ser real; a Igreja, ao exagerar seu poder com vistas a atemorizar, chega a um resultado completamente contrário, ou seja, à destruição, não somente de todo temor, mas também de toda crença em sua pessoa, segundo o provérbio: “Quem quer provar demais nada prova.” Ela o representa como eminentemente perspicaz, hábil e astuto, e na questão do Espiritismo ela o faz representar o papel de um tolo e um desajeitado.
Visto que o objetivo de Satã é alimentar o inferno com suas vítimas e arrancar de Deus as almas, é compreensível que ele se dirija aos que estão no bem para induzi-los ao mal, e que para isso se transforme, segundo uma belíssima alegoria, em anjo de luz, isto é, o hipócrita simulando a virtude; mas o que não se compreende é porque ele deixaria escapar aqueles que já estão em suas garras. Aqueles que não creem em Deus nem na própria alma, que desprezam a prece e estão mergulhados no vício são dele tanto quanto é possível ser; ele nada mais tem a fazer para afundá-los ainda mais na lama; ora, incitá-los a retornar a Deus, a orar, a submeter-se à Sua vontade, encorajá-los a renunciar ao mal mostrando-lhes a felicidade dos eleitos e o triste destino que espera os maus, seria o ato de um tolo, mais estúpido do que libertar pássaros engaiolados com a intenção de prendê-los em seguida.
Há, pois, na doutrina da comunicação exclusiva dos demônios uma contradição que impressiona todo homem sensato; por isso, jamais se persuadirá que os Espíritos que reconduzem a Deus aqueles que o renegavam, ao bem os que faziam o mal, que consolam os aflitos, dão força e coragem aos fracos; que, pela sublimidade de seus ensinamentos, elevam a alma acima da vida material, sejam demônios, e que, por esse motivo, deva-se proibir toda relação com o mundo invisível.
O Padre – Se a Igreja proíbe as comunicações com os Espíritos dos mortos, é porque elas são contrárias à religião como sendo formalmente condenadas pelo Evangelho e por Moisés. Este último, ao decretar a pena de morte contra tais práticas, prova o quanto elas são repreensíveis aos olhos de Deus.
A. K. – Peço-vos desculpas, mas essa proibição não está em nenhuma parte do Evangelho; está somente na lei mosaica. Trata-se então de saber se a Igreja coloca a lei mosaica acima da lei evangélica, ou seja, se é mais judaica que cristã. É importante notar que, de todas as religiões, a que fez menos oposição ao Espiritismo foi a judaica, e ela não invocou contra as evocações a lei de Moisés, sobre a qual se apoiam as seitas cristãs. Se as prescrições bíblicas são o código da fé cristã, por que proibir a leitura da Bíblia? O que se diria se se proibisse a um cidadão estudar o código de leis de seu país?
A proibição feita por Moisés tinha naquela época sua razão de ser, porque o legislador hebreu queria que seu povo rompesse com todos os costumes adquiridos com os egípcios, e o costume do qual se trata aqui era um motivo de abuso. Os mortos não eram evocados por respeito e afeição, nem com um sentimento de piedade; era um meio de adivinhação, objeto de um comércio vergonhoso explorado pelo charlatanismo e pela superstição; portanto, Moisés teve razão de proibi-lo. Se ele decretou uma pena severa contra esse abuso, foi porque eram precisos meios rigorosos para governar um povo indisciplinado; também a pena de morte era esbanjada em sua legislação. É pois um erro apoiar-se na severidade do castigo para provar o grau de culpabilidade da evocação dos mortos.
Se a proibição de evocar os mortos vem do próprio Deus, como o pretende a Igreja, deve ter sido Deus quem promulgou a pena de morte contra os delinquentes. A pena tem então uma origem tão sagrada quanto a proibição; por que então não conservá-la? Todas as leis de Moisés foram promulgadas em nome de Deus e por Sua ordem. Se se acredita que Deus é o autor delas, por que não são mais observadas? Se a lei de Moisés é para a Igreja um artigo de fé em um ponto, por que não o é em todos? Por que recorrer a ela naquilo que se precisa, e rejeitá-la no que não convém? Por que não seguir todas as suas prescrições, a circuncisão entre outras, que Jesus sofreu e não aboliu?
Havia na lei mosaica duas partes: 1° a lei de Deus, resumida nas tábuas do Sinai; esta lei permaneceu porque ela é divina e o Cristo não fez senão desenvolvê-la; 2° a lei civil ou disciplinar, apropriada aos costumes da época e que o Cristo aboliu.
Hoje as circunstâncias não são mais as mesmas, e a proibição de Moisés não tem mais motivos. Ademais, se a Igreja proíbe chamar os Espíritos, pode ela impedi-los de vir sem que sejam chamados? Não vemos todos os dias pessoas que jamais se ocuparam do Espiritismo, e não as víamos muito antes que se falasse dele, tendo manifestações de todo gênero?
Outra contradição. Se Moisés proibiu que se evocasse os Espíritos dos mortos, é porque esses Espíritos podem vir, caso contrário sua proibição teria sido inútil. Se podiam vir em seu tempo, eles o podem ainda hoje; se são os Espíritos dos mortos, então não são exclusivamente demônios. Antes de tudo, é preciso ser lógico.
O Padre – A Igreja não nega que bons Espíritos possam se comunicar, pois reconhece que os santos tiveram manifestações; mas ela não pode considerar como bons aqueles que vêm contradizer seus princípios imutáveis. Os Espíritos ensinam, é verdade, sobre as penas e as recompensas futuras, mas não o fazem como a Igreja; somente ela pode julgar seus ensinamentos e discernir os bons dos maus.
A. K. – Eis aí a grande questão. Galileu foi acusado de heresia e de ser inspirado pelo demônio porque vinha revelar uma lei da natureza, provando o erro de uma crença considerada inatacável; ele foi condenado e excomungado. Se os Espíritos tivessem concordado em todos os pontos no sentido exclusivo da Igreja, se não tivessem proclamado a liberdade de consciência e condenado certos abusos, eles teriam sido bem-vindos e não os teriam qualificados de demônios.
Tal é também a razão pela qual todas as religiões, tanto os muçulmanos quanto os católicos, acreditando-se em possessão da verdade absoluta, encaram como obra do demônio toda doutrina que não seja, do seu ponto de vista, totalmente ortodoxa. Ora, os Espíritos não vêm para derrubar a religião, mas, assim como Galileu, vêm revelar novas leis da natureza. Se alguns pontos de fé sofrem com isso, é porque, como a crença no movimento do Sol, tais pontos estão em contradição com essas leis. A questão é saber se um artigo de fé pode anular uma lei da natureza que é obra de Deus; e, uma vez essa lei reconhecida, se não seria mais sábio interpretar o dogma no sentido da lei, em vez de atribui-la ao demônio.
O Padre – Deixemos de lado a questão dos demônios; sei que ela é interpretada diversamente pelos teólogos; todavia, o sistema da reencarnação me parece mais difícil de conciliar com os dogmas, porque não é outra coisa senão a metempsicose de Pitágoras renovada.
A.K. – Não é este o momento para discutir uma questão que exigiria longos desenvolvimentos; vós a encontrareis tratada em O Livro dos Espíritos e em O Evangelho segundo o Espiritismo1, então direi sobre ela apenas algumas palavras.
A metempsicose dos Antigos consistia na transmigração da alma do homem para os animais, o que implicava uma degradação. De resto, essa doutrina não era o que vulgarmente se crê. A transmigração para os animais não era considerada como uma condição inerente à natureza da alma humana, mas como um castigo temporário; assim, as almas dos assassinos passavam a corpos de animais ferozes para receberem aí sua punição; as dos impudicos aos porcos e javalis; as dos inconstantes e frívolos a corpos de aves; as dos preguiçosos e ignorantes aos de animais aquáticos. Depois de alguns milhares de anos dessa espécie de prisão, mais ou menos segundo a culpabilidade, a alma retornava à humanidade. A encarnação animal não era, portanto, uma condição absoluta, e ela se aliava, como se vê, à reencarnação humana, e a prova disso é que a punição dos homens tímidos consistia em passar a corpos de mulheres expostas ao desprezo e às injúrias2. Era uma espécie de espantalho para os simples, muito mais do que um artigo de fé entre os filósofos. Assim como se diz às crianças: “Se sois maus, o lobo vos comerá.” Os antigos diziam aos criminosos: “Sereis transformados em lobos.” Hoje, se diz: “O diabo vos pegará e vos levará para o inferno”.
A pluralidade das existências, segundo o Espiritismo, difere essencialmente da metempsicose, pois não admite a encarnação da alma nos animais, mesmo como punição. Os Espíritos ensinam que a alma não retrograda, mas que progride incessantemente. Suas diferentes existências corporais se realizam na humanidade; cada existência é para ela um passo à frente na via do progresso intelectual e moral, o que é bem diferente. Não podendo adquirir um desenvolvimento completo em uma única existência, muitas vezes abreviada por causas acidentais, Deus lhe permite continuar, em uma nova encarnação, a tarefa que ela não pôde completar, ou recomeçar o que tenha feito mal. A expiação, na vida corporal, consiste nas tribulações que nela se suportam.
Quanto à questão de saber se a pluralidade das existências é ou não contrária a certos dogmas da Igreja, limito-me a dizer isto:
De duas coisas, uma: a reencarnação existe, ou não existe; se ela existe, é porque está nas leis da natureza. Para provar que ela não existe, seria necessário provar que é contrária, não aos dogmas, mas a essas leis, e que se pode encontrar outra que explique de maneira mais clara e mais lógica as questões que só ela pode resolver.
No mais, é fácil demonstrar que certos dogmas encontram aí uma sanção racional que os faz aceitos por aqueles que os recusavam por falta de compreensão. Não se trata, pois, de destruir, mas de interpretar; isso é o que acontecerá mais tarde pela força das coisas. Aqueles que não quiserem aceitar a interpretação serão totalmente livres, como o são ainda hoje de crer que é o Sol que gira. A ideia da pluralidade das existências se vulgariza com uma rapidez surpreendente, em razão de sua extrema lógica e de sua conformidade com a justiça de Deus. Quando ela for reconhecida como verdade natural e aceita por todos, o que fará a Igreja?
Em resumo, a reencarnação não é um sistema imaginado para as necessidades de uma causa, nem uma opinião pessoal; ela é ou não é um fato. Se for demonstrado que certas coisas que existem são materialmente impossíveis sem a reencarnação, é preciso admitir que elas são o fato da reencarnação; portanto, se ela está na natureza, não pode ser anulada por uma opinião contrária.
O Padre – Aqueles que não creem nos Espíritos e em suas manifestações, são, segundo os Espíritos, menos favorecidos na vida futura?
A. K. – Se essa crença fosse indispensável para a salvação dos homens, o que seria daqueles que, desde que o mundo existe, não tiveram a oportunidade de tê-la, e daqueles que, por muito tempo ainda, morrerão sem ela? Deus pode fechar-lhes a porta do futuro? Não; os Espíritos que nos instruem são mais lógicos do que isso; eles nos dizem: Deus é soberanamente justo e bom, e não faz o destino futuro do homem depender de condições independentes de sua vontade; eles não dizem: Fora do Espiritismo não há salvação, dizem, como o Cristo: Fora da caridade não há salvação.
O Padre – Então permitais-me dizer-vos que, uma vez que os Espíritos ensinam apenas os princípios da moral que encontramos no Evangelho, não vejo qual é a utilidade do Espiritismo, pois podíamos fazer nossa salvação antes e ainda podemos fazê-lo sem ele. Não seria o mesmo se os Espíritos viessem ensinar algumas grandes verdades novas, alguns desses princípios que mudam a face do mundo, como fez o Cristo. Pelo menos o Cristo era só, sua doutrina era única, enquanto os Espíritos são milhares que se contradizem; uns dizem branco, outros preto; disso resulta que desde o início seus seguidores já formam várias seitas. Não seria melhor deixar os Espíritos tranquilos e atermo-nos ao que temos?
A. K. – Estais errado, senhor, ao não sair de vosso ponto de vista e de sempre tomar a Igreja como único critério dos conhecimentos humanos. Se o Cristo disse a verdade, o Espiritismo não poderia dizer outra coisa, e ao invés de atirar-lhe a pedra, deveríamos recebê-lo como um poderoso auxiliar que vem confirmar, por todas as vozes de além-túmulo, as verdades fundamentais da religião atacadas pela incredulidade. Que o materialismo o combata, compreende-se; mas que a Igreja se ligue ao materialismo contra ele é menos concebível. O que é igualmente inconsequente é que ela qualifique de demoníaco um ensinamento que se apoia sobre a mesma autoridade e proclama a missão divina do fundador do Cristianismo.
Ademais, o Cristo disse tudo? Poderia ele revelar tudo? Não, pois ele mesmo disse: “Eu teria ainda muitas coisas a vos dizer, mas vós não as compreenderíeis, por isso vos falo por parábolas.” O Espiritismo vem, hoje que o homem está maduro para compreendê-lo, completar e explicar o que o Cristo não fez senão tocar, intencionalmente, ou disse apenas sob a forma alegórica. Direis, sem dúvida, que o cuidado dessa explicação cabia à Igreja. Mas, à qual? À Igreja romana, grega ou protestante? Uma vez que elas não estão de acordo, cada uma teria explicado à sua maneira e reivindicado esse privilégio. Qual delas teria reunido todos os cultos dissidentes? Deus, que é sábio, prevendo que os homens nela misturariam suas paixões e seus preconceitos, não quis confiar-lhes o cuidado dessa nova revelação; ele a confiou aos Espíritos, seus mensageiros, que a proclamam em todos os pontos do globo, e isso fora de qualquer culto particular, a fim de que ela possa se aplicar a todos, e que nenhum a desvie em proveito próprio.
Por outro lado, os diversos cultos cristãos não se desviaram em nada da via traçado por Cristo? Seus preceitos de moral são escrupulosamente observados? Suas palavras não foram deturpadas para delas fazer um apoio à ambição e às paixões humanas, quando são a sua condenação? Ora, o Espiritismo, pela voz dos Espíritos enviados de Deus, vêm lembrar àqueles que deles se desviam a estrita observância de seus preceitos; não seria principalmente por este último motivo que o qualificam de obra satânica?
É sem razão que dais o nome de seitas a algumas divergências de opiniões no tocante aos fenômenos espíritas. Não é surpreendente que no início de uma ciência tenham surgido teorias contraditórias, quando as observações eram ainda incompletas para muitos; mas essas teorias repousam sobre pontos de detalhe e não sobre o princípio fundamental. Elas podem constituir escolas que explicam certos fatos à sua maneira, mas não são mais seitas do que os diferentes sistemas que dividem nossos cientistas sobre as ciências exatas: em Medicina, Física, etc. Riscai, pois, a palavra seita que é totalmente imprópria no caso em questão. Aliás, desde a origem, o próprio Cristianismo não deu nascimento a uma multidão de seitas? Por que a palavra do Cristo não foi bastante poderosa para impor silêncio a todas as controvérsias? Por que ela é suscetível de interpretações que dividem ainda hoje os cristãos em diferentes Igrejas, pretendendo todas elas ter a posse exclusiva da verdade necessária para a salvação, que se detestam cordialmente e se anatematizam em nome de seu divino mestre que só pregou o amor e a caridade? A fraqueza dos homens, direis? Que seja; mas por que quereis que o Espiritismo triunfe subitamente sobre essa fraqueza e transforme a humanidade como por encanto?
Chego à questão de utilidade. Dizeis que o Espiritismo não nos ensina nada de novo; é um erro: ao contrário, ele ensina muito àqueles que não se detêm na superfície. Ainda que ele apenas tivesse colocado a máxima: Fora da caridade não há salvação, que une os homens, em substituição a esta: Fora da Igreja não há salvação, que os divide, e já teria marcado uma nova era para a humanidade.
Dizeis que se poderia viver sem ele; de acordo; assim como se pode viver sem uma série de descobertas científicas. Certamente os homens viviam muito bem antes da descoberta de todos os novos planetas; antes que se tivesse calculado os eclipses; antes que se conhecesse o mundo microscópico e cem outras coisas; o camponês, para viver e cultivar seu trigo, não precisa saber o que é um cometa; no entanto, ninguém nega que todas essas coisas ampliam o círculo das ideias e nos fazem penetrar mais profundamente nas leis da natureza. Ora, o mundo dos Espíritos é uma dessas leis que o Espiritismo nos dá a conhecer; ensina-nos a influência que ele exerce sobre o mundo corporal; suponhamos que aí se detenha sua utilidade, já não seria muito a revelação de um tal poder?
Vejamos agora sua influência moral. Admitamos que ele não ensine absolutamente nada de novo sob este aspecto; qual é o maior inimigo da religião? O materialismo, porque o materialista não crê em nada; ora, o Espiritismo é a negação do materialismo, que não tem mais razão de ser. Não é mais pelo raciocínio, pela fé cega que se diz ao materialista que tudo não acaba com seu corpo, é pelos fatos; mostra-se-lhe, faz-se com que ele toque com o dedo e veja com os olhos. É este um pequeno serviço que o Espiritismo presta à humanidade, à religião? Mas ainda não é tudo: a certeza da vida futura, o quadro vivo daqueles que nela nos precederam, mostram a necessidade do bem e as inevitáveis consequências do mal. Eis porque, sem ser ele mesmo uma religião, contribui essencialmente para as ideias religiosas; ele as desenvolve naqueles que não as têm e as fortalece naqueles para os quais elas são incertas. A religião encontra nele um apoio, não para essas pessoas de visão estreita que a veem toda inteira na doutrina do fogo eterno, na letra mais do que no espírito, mas para aqueles que a veem segundo a grandeza e a majestade de Deus.
Em uma palavra, o Espiritismo cresce e eleva as ideias; ele combate os abusos engendrados pelo egoísmo, pela cupidez, pela ambição; porém, quem ousaria defendê-los e se declarar seus campeões? Se ele não é indispensável à salvação, ele a facilita ao fortalecer-nos no caminho do bem. Ademais, qual é o homem sensato que ousaria afirmar que uma falta de ortodoxia é mais repreensível aos olhos de Deus do que o ateísmo e o materialismo? Eu coloco claramente as seguintes questões a todos aqueles que combatem o Espiritismo sob o aspecto das consequências religiosas:
1° Quem é o menos aquinhoado na vida futura: aquele que em nada crê, ou aquele que, crendo nas verdades gerais, não admite certas partes do dogma?
2° O protestante e o cismático estão confundidos na mesma reprovação que o ateu e o materialista?
3° Aquele que não é ortodoxo, no sentido estrito da palavra, mas que faz todo o bem que pode, que é bom e indulgente com seu próximo, leal em suas relações sociais, está menos seguro de sua salvação do que aquele que em tudo crê, mas é duro, egoísta e desprovido de caridade?
4° Qual vale mais aos olhos de Deus: a prática das virtudes cristãs sem a dos deveres da ortodoxia, ou a prática destas últimas sem a da moral?
Respondi, senhor Abade, às questões e às objeções que me dirigistes, mas, como vos disse no início, sem qualquer intenção preconcebida de vos trazer às nossas ideias e de mudar vossas convicções, limitando-me a fazer-vos encarar o Espiritismo sob seu verdadeiro ponto de vista. Se não tivésseis vindo, eu não teria ido vos procurar. Isso não significa que desprezemos vossa adesão aos nossos princípios, se ela devesse ocorrer, longe disso; ao contrário, estamos felizes com todas as adesões feitas, tanto mais valiosas para nós quanto são livres e voluntárias. Não só não temos nenhum direito de constranger quem quer que seja, como teríamos escrúpulos de ir perturbar a consciência daqueles que, tendo crenças que os satisfazem, não vêm a nós espontaneamente.
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Dissemos que o melhor meio de se esclarecer sobre o Espiritismo é estudar primeiramente a sua teoria; os fatos surgirão naturalmente na sequência e serão compreendidos, seja qual for a ordem em que forem trazidos pelas circunstâncias. Nossas publicações são feitas com o objetivo de favorecer este estudo; eis a ordem que nós aconselhamos.
A primeira leitura a fazer é a deste resumo que apresenta o conjunto e os pontos mais salientes da ciência; com isso já se pode ter uma ideia e se convencer de que no fundo há algo sério. Nesta rápida exposição procuramos indicar os pontos que devem particularmente fixar a atenção do observador. A ignorância dos princípios fundamentais é a causa das falsas apreciações da maioria daqueles que julgam o que não compreendem, ou o fazem segundo suas ideias preconcebidas.
Se este primeiro resumo despertar o desejo de saber mais, recomendamos a leitura de O Livro dos Espíritos, onde os princípios da doutrina estão completamente desenvolvidos; depois, O Livro dos Médiuns para a parte experimental, destinado a servir de guia aos que querem operar por si mesmos, bem como aos que querem compreender os fenômenos. Em seguida, vêm as diversas obras nas quais são desenvolvidas as aplicações e as consequências da doutrina, tais como: O Evangelho segundo o Espiritismo, O Céu e o Inferno segundo o Espiritismo, etc.
A Revista Espírita é, de certa maneira, um curso de aplicações pelos numerosos exemplos e desenvolvimentos que ela encerra, sobre a parte teórica e sobre a parte experimental.
Às pessoas sérias, que tenham feito um estudo prévio, temos o prazer de dar verbalmente as explicações necessárias sobre os pontos que elas não tenham compreendido suficientemente.
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1 Ver O Livro dos Espíritos, n° 166 e seguintes, idem 222; idem 1010. O Evangelho segundo o Espiritismo, capítulos IV e V.
2 Veja-se: A Pluralidade das existências da alma, por Pezzani.