DISCURSO III
Quando se considera o estado atual da sociedade, fica-se tentado a pensar que sua transformação só se daria por um milagre. Pois bem! é esse milagre que o Espiritismo pode e deve realizar, porque ele está nos desígnios de Deus, com a ajuda de sua palavra de ordem: Fora da caridade não há salvação. Que a sociedade tome essa máxima por divisa e conforme a ela sua conduta, em vez desta que está na ordem do dia: A caridade bem ordenada começa por si, e tudo muda. O principal é fazer que a primeira seja aceita.
A palavra caridade, como sabeis, senhores, tem uma acepção muito extensa. Há a caridade em pensamentos, em palavras e em ações; ela não está somente na esmola. Aquele que é indulgente para com as faltas de seu próximo é caridoso em pensamentos; aquele que não diz nada que possa prejudicar seu próximo, é caridoso em palavras; aquele que assiste seu próximo na medida de suas forças, é caridoso em ações. O pobre que divide seu pedaço de pão com um mais pobre do que ele é caridoso e tem mais mérito aos olhos de Deus do que aquele que dá do seu supérfluo, sem privar-se de nada. Àquele que alimenta contra seu próximo sentimentos de ódio, de animosidade, de ciúme, de rancor, falta a caridade. A caridade é a contrapartida do egoísmo; uma é a abnegação da personalidade, o outro a exaltação da personalidade; a caridade diz: Para vós primeiro, para mim em seguida; o egoísmo diz: Para mim primeiro, para vós se sobrar. A primeira está inteiramente nesta fala do Cristo: “Fazei pelos outros o que gostaríeis que fizessem por vós;” em uma palavra, ela se aplica, sem exceção, a todas as relações sociais. Convenhais que, se todos os membros de uma sociedade agissem segundo esse princípio, haveria menos decepções na vida. Desde que dois homens estejam juntos, eles contraem, por isso mesmo, deveres recíprocos; se querem viver em paz, são obrigados a fazerem-se mútuas concessões. Esses deveres aumentam com o número dos indivíduos; as aglomerações formam todos coletivos que têm também suas obrigações respectivas; tendes, portanto, além das relações de indivíduo a indivíduo, as de cidade a cidade, de província a província, de país a país. Essas relações podem ter dois motivos que são a negação um do outro: o egoísmo e a caridade, pois há também o egoísmo nacional. Com o egoísmo, o interesse pessoal está acima de tudo, cada um puxa para si, cada um vê no seu semelhante apenas um antagonista, um rival que pode entrar em concorrência, que pode nos explorar ou que nós podemos explorar, e ganha quem suplantar seu vizinho: a vitória cabe ao mais hábil; e a sociedade, coisa triste de dizer, com frequência consagra essa vitória, o que faz com que ela se divida em duas classes principais: os exploradores e os explorados. Daí resulta um antagonismo perpétuo que faz da vida um tormento, um verdadeiro inferno. Substituí o egoísmo pela caridade e tudo muda; ninguém procurará fazer mal a seu vizinho; os ódios e os ciúmes se extinguirão por falta de alimento, e os homens viverão em paz, ajudando-se reciprocamente em vez de se dilacerar. A caridade substituindo o egoísmo, todas as instituições sociais serão fundadas sobre o princípio da solidariedade e da reciprocidade; o forte protegerá o fraco em vez de explorá-lo.
Dir-se-á: é um belo sonho, mas infelizmente não passa de um sonho; o homem é egoísta por natureza, por necessidade, e o será sempre. Se assim fosse, seria triste, e precisaria então se perguntar com que objetivo o Cristo veio pregar a caridade aos homens; teria valido o mesmo pregá-la aos animais. No entanto, examinemos.
Há progresso do selvagem ao homem civilizado? Não se busca todos os dias, pelo devotamento dos missionários, abrandar nas colônias os costumes dos selvagens? Com que objetivo, se o homem é incorrigível? Estranha bizarria! Esperais corrigir os selvagens, e pensais que o homem civilizado não pode se melhorar! Se o homem civilizado tivesse a pretensão de ter alcançado o último limite do progresso acessível à espécie humana, bastaria comparar os costumes, o caráter, a legislação, as instituições sociais de hoje com o que se tinha outrora; no entanto, os homens de outrora acreditavam, também eles, ter alcançado o último nível. O que teria respondido um grande senhor do tempo de Luís XIV, se lhe tivessem dito que poderia haver uma ordem de coisas melhor, mais equitativa, mais humana do que a de seu tempo? Que esse regime mais equitativo seria a abolição dos privilégios de castas, e a igualdade do grande e do pequeno perante a lei? O audacioso que dissesse isso talvez pagasse caro por sua temeridade.
Concluamos daí que o homem é eminentemente perfectível, e que os mais avançados de hoje poderão parecer tão atrasados daqui a alguns séculos, quanto aqueles da Idade Média o são em relação a nós. Negar o fato seria negar o progresso, que é uma lei natural.
Embora o homem tenha ganhado do ponto de vista moral, todavia é preciso convir que o progresso se realizou mais no sentido intelectual; por que isso? Esse é ainda um desses problemas que cabe ao Espiritismo nos explicar, mostrando-nos que o moral e a inteligência são duas vias que raramente caminham juntas; enquanto o homem dá alguns passos numa delas, permanece atrás na outra; porém, mais tarde ele recupera o terreno que perdera, e as duas forças acabam por se equilibrar nas encarnações sucessivas. O homem chegou a um período em que as ciências, as artes e a indústria atingiram um limite desconhecido até hoje; porém, se os gozos que ele tira daí satisfazem a vida material, deixam um vazio na alma. O homem aspira por algo melhor; sonha com melhores instituições; ele quer a vida, a felicidade, a igualdade, a justiça para todos; mas como atingir tais aspirações com os vícios da sociedade, sobretudo com o egoísmo? O homem vê a necessidade do bem para ser feliz; ele compreende que só o reino do bem lhe pode dar a felicidade à qual ele aspira; esse reino, ele o pressente, pois instintivamente tem fé na justiça de Deus, e uma voz secreta lhe diz que uma era nova vai se abrir.
Como isso se dará? Uma vez que o reino do bem é incompatível com o egoísmo, é preciso a destruição do egoísmo. Ora, quem o pode destruir? A predominância do sentimento de amor, que leva os homens a se tratarem como irmãos e não como inimigos. A caridade é a base, a pedra angular de todo edifício social; sem ela o homem só construirá na areia. Assim sendo, que os esforços e sobretudo os exemplos de todos os homens de bem tendam a propagá-la; que não se desencorajem se virem uma recrudescência das más paixões; elas são os inimigos do bem, e ao vê-lo avançar, elas devem lançar-se contra ele; mas Deus permitiu que, por seus próprios excessos, elas se matem; o paroxismo de um mal é sempre o sinal de que ele chega ao seu fim.
Acabo de dizer que sem a caridade o homem não constrói senão na areia; um exemplo dará uma melhor compreensão disso.
Alguns homens bem-intencionados, tocados pelos sofrimentos de uma parte de seus semelhantes, acreditaram encontrar o remédio para o mal em certos sistemas de reforma social. Com pequenas diferenças, o princípio é quase o mesmo em todos eles, seja qual for o nome que lhe dão. Vida em comum para ser menos onerosa; comunidade de bens para que cada um tenha alguma coisa; participação de todos na obra comum; sem grandes riquezas, mas também sem miséria. Isso era muito sedutor para aquele que, não tendo nada, já antevia a bolsa do rico entrar no fundo social, sem calcular que a totalidade das riquezas postas em comum criaria uma miséria geral em vez de uma miséria parcial; que a igualdade estabelecida hoje seria rompida amanhã pela mobilidade da população e a diferença nas aptidões; que a igualdade permanente dos bens supõe a igualdade das capacidades e do trabalho. Mas essa não é a questão; não entra em meu quadro examinar o ponto forte e o fraco desses sistemas; abstração feita das impossibilidades de que acabo de falar, proponho-me a encarar tais sistemas de um outro ponto de vista, com o qual não sei que se tenham preocupado até então, e que se vincula ao nosso assunto.
Os autores, fundadores ou promotores de todos esses sistemas, sem exceção, não se propuseram senão à organização da vida material de uma maneira proveitosa para todos. O objetivo é louvável, sem contradita; resta saber se, nesse edifício, não falta a base, única que poderia consolidá-lo, admitindo que fosse praticável.
A comunidade é a abnegação mais completa da personalidade; devendo cada um pagar de sua própria pessoa, ela requer o mais absoluto devotamento. Ora, o móvel da abnegação e do devotamento é a caridade, ou seja, o amor ao próximo. No entanto, reconhecemos que o fundamento da caridade é a crença; que a falta de crença conduz ao materialismo, e o materialismo ao egoísmo. Num sistema que, por sua natureza, requer para sua estabilidade as virtudes morais em supremo grau, seria preciso tomar o ponto de partida no elemento espiritual; pois bem! Não somente esse elemento não é absolutamente levado em conta, uma vez que o lado material é o objetivo único, mas vários são fundados com base numa doutrina materialista altamente confessada, ou sobre um panteísmo, espécie de materialismo disfarçado; ou seja, com o elemento destruidor por excelência. Enfeitam-nos com o belo nome de fraternidade; mas a fraternidade, e tampouco a caridade, não se impõe nem se decreta; é preciso que ela esteja no coração. Não é o sistema que a fará nascer se ela já não estiver ali, enquanto o defeito contrário arruinará o sistema e o fará cair na anarquia, porque cada um quererá tirar para si. A experiência está aí para provar que ele não abafa nem as ambições nem a cupidez. Antes de fazer a coisa para os homens, é preciso formar os homens para a coisa, como se formam operários antes de lhes confiar um trabalho; antes de construir, é preciso assegurar-se da solidez dos materiais. Nesse caso, os materiais sólidos são os homens de coração, de devotamento e de abnegação. Com o egoísmo, o amor e a fraternidade são palavras vãs, tal como o dissemos; como então, sob o império do egoísmo, fundar um sistema que requer a abnegação num grau tanto maior, quanto ele tem por princípio essencial a solidariedade de todos por um e de cada um por todos? Alguns deixaram o solo natal para ir fundar ao longe colônias sob o regime da fraternidade; quiseram fugir do egoísmo que os esmagava, mas o egoísmo os seguiu, e ali ainda se encontraram exploradores e explorados, porque faltou a caridade. Eles acreditaram que bastava levar o maior número possível de braços, sem pensar que ao mesmo tempo levavam os vermes roedores de sua instituição, arruinada tanto mais depressa quanto não tinham em si nem uma força moral nem uma força material suficientes.
O que mais precisavam era de corações sólidos, não de braços numerosos; infelizmente muitos não os seguiram a não ser porque, não tendo sabido fazer nada em outro lugar, acreditaram libertar-se de certas obrigações pessoais; viram aí apenas um objetivo sedutor, sem notar a estrada espinhosa para atingi-lo. Decepcionados em suas esperanças, reconhecendo que antes de usufruir era preciso trabalhar muito, sacrificar muito, sofrer muito, tiveram por perspectiva o desencorajamento e o desespero; sabeis o que aconteceu à maioria. O erro foi ter querido construir um edifício começando pela cumeeira, antes de ter assentado fundações sólidas. Estudai a história e a causa da queda dos Estados mais florescentes, e em toda parte vereis a mão do egoísmo, da cupidez, da ambição.
Sem a caridade, não há instituição humana estável, e não há nem caridade nem fraternidade possíveis, na verdadeira acepção da palavra, sem a crença. Aplicai-vos, pois, a desenvolver esses sentimentos que, aumentando, matarão o egoísmo que vos mata. Quando a caridade tiver penetrado as massas, quando tiver se tornado a fé, a religião da maioria, então vossas instituições melhorarão por si mesmas pela força das coisas; os abusos, nascidos do sentimento da personalidade, desaparecerão. Ensinai então a caridade, e sobretudo pregai pelo exemplo: ela é a âncora de salvação da sociedade. Só ela pode trazer o reino do bem sobre a Terra, que é o reino de Deus; sem ela, o que quer que façais, criareis apenas utopias das quais não retirareis senão decepções. Se o Espiritismo é uma verdade, se ele deve regenerar o mundo, é porque tem por base a caridade. Ele não vem derrubar o culto, nem estabelecer um novo; ele proclama e prova as verdades comuns a todos, bases de todas as religiões, sem se preocupar com os pontos de detalhe. Ele vem destruir apenas uma coisa: o materialismo, que é a negação de toda religião; derrubar apenas um único templo: o do egoísmo e do orgulho, e dar uma sanção prática a estas palavras do Cristo, que são toda a sua lei: Amai vosso próximo como a vós mesmos. Não vos espanteis então de que ele tenha por adversários os adoradores do bezerro de ouro, cujos altares vem quebrar. Ele naturalmente tem contra si aqueles que acham sua moral incômoda, aqueles que teriam de bom grado pactuado com os Espíritos e suas manifestações, se os Espíritos se tivessem contentado em diverti-los; se não tivessem vindo rebaixar seu orgulho, pregar-lhes a abnegação, o desinteresse e a humildade. Deixai-os dizer e fazer; as coisas não deixarão de seguir a marcha que está nos desígnios de Deus.
O Espiritismo, pela sua poderosa revelação, vem então apressar a reforma social. Sem dúvida seus adversários rirão desta pretensão, porém ela nada tem de presunçoso. Demonstramos que a incredulidade, a simples dúvida sobre o futuro, leva o homem a se concentrar na vida presente, o que muito naturalmente desenvolve o sentimento de egoísmo. O único remédio para o mal é concentrar sua atenção em outro ponto e desenraizá-lo, por assim dizer, a fim de fazê-lo perder seus hábitos. O Espiritismo, ao provar de maneira patente a existência do mundo invisível, traz forçosamente uma ordem de ideias completamente diferente, pois alarga o horizonte moral limitado à Terra. A importância da vida corporal diminui à medida que cresce a da vida espiritual; muito naturalmente nos colocamos em outro ponto de vista, e o que nos parecia uma montanha não nos parece mais do que um grão de areia; as vaidades, as ambições do mundo se tornam puerilidades, brinquedo de crianças em presença do futuro grandioso que nos espera. Apegando-se menos às coisas terrestres, procura-se menos satisfazer-se às despensas dos outros; daí uma diminuição no sentimento de egoísmo.
O Espiritismo não se limita a provar o mundo invisível; pelos exemplos que expõe aos nossos olhos, ele no-lo mostra em sua realidade, e não tal qual a imaginação o fizera conceber; ele o mostra povoado de seres felizes ou infelizes, mas prova que a caridade, a soberana lei do Cristo, é a única que pode aí assegurar a felicidade. Por outro lado, vemos a sociedade terrena dilacerar-se mutuamente sob o império do egoísmo, ao passo que viveria feliz e pacífica sob o da caridade. Tudo é, pois, benefício para o homem com a caridade: felicidade neste mundo e felicidade no outro. Não é mais, segundo a expressão de um materialista, um sacrifício de tolos; é, segundo a do Cristo: dinheiro aplicado ao cêntuplo. Com o Espiritismo, o homem compreende que tem tudo a ganhar fazendo o bem, e tudo a perder fazendo o mal; ora, entre, não direi a sorte, mas a certeza de perder ou de ganhar, a escolha não poderia deixar dúvidas. Portanto, a propagação da ideia espírita tende necessariamente a tornar os homens melhores uns para os outros. O que ele faz hoje nos indivíduos, ele o fará nas massas quando estiver amplamente difundido. Tratemos então difundi-lo no interesse de todos.
Antevejo uma objeção que se poderia fazer dizendo que, segundo essas ideias, a prática do bem seria um cálculo interessado. A isso respondo que a Igreja, ao prometer as alegrias do céu ou ameaçando com as chamas do inferno, conduz ela própria os homens pela esperança e o medo; que o próprio Cristo disse que o que damos neste mundo será devolvido cem vezes mais. Sem dúvida, há mais mérito em fazer o bem espontaneamente sem pensar nas consequências, mas nem todos os homens chegaram lá, e ainda vale mais fazer o bem com esse estímulo do que não o fazer absolutamente.
Às vezes se diz que as pessoas que fazem o bem sem premeditação e, por assim dizer, sem dar-se conta, não têm mérito, porque o fazem sem esforço; é um erro. O homem não chega a nada sem esforços; aquele que não precisa se esforçar nessa existência lutou numa precedente, e o bem acabou por se identificar com ele, por isso lhe parece tão natural; nele ocorre com o bem, como em outros com as ideias inatas que, também elas, têm sua origem num trabalho anterior. É ainda um dos problemas que o Espiritismo vem resolver. Portanto, os homens de bem tiveram também o mérito da luta; para eles a vitória foi obtida, os outros têm ainda que vencer; eis porque, assim como para as crianças, é preciso um estimulante, isto é, um objetivo a alcançar ou, se quiserdes, um prêmio a ganhar.
Uma outra objeção mais séria é esta. Se o Espiritismo produz todos esses resultados, os espíritas devem ser os primeiros a aproveitá-los; a abnegação, o devotamento desinteressado, a indulgência para com outrem, a abstenção absoluta de toda palavra ou de todo ato que possa prejudicar o próximo, a caridade, numa palavra, na sua mais pura acepção, deve ser a regra invariável de sua conduta; eles não devem conhecer nem o orgulho, nem o ciúme, nem a inveja, nem o rancor, nem as tolas vaidades, nem as pueris susceptibilidades do amor-próprio; eles devem fazer o bem pelo bem, com modéstia e sem ostentação, praticando esta máxima do Cristo: “Que vossa mão esquerda não saiba o que dá vossa mão direita”; nenhum merecerá que lhe apliquem este verso de Racine:
Um benefício lançado em rosto sempre vale por uma ofensa.
Enfim, a mais perfeita harmonia deve reinar entre eles. Por que então se citam exemplos que parecem contradizer a eficácia dessas belas máximas?
No princípio das manifestações espíritas, muitos as aceitaram sem lhes prever as consequências; a maioria não viu aí senão efeitos mais ou menos curiosos, mas quando saiu dali uma moral severa, deveres rigorosos a cumprir, muitos não tiveram forças para praticá-la e conformar-se a ela; não tiveram coragem nem devotamento, nem abnegação, nem humildade: a natureza corporal suplantou neles a natureza espiritual; eles puderam crer, mas recuaram diante da execução. Na origem, portanto, havia apenas espíritas, ou seja, crentes; a filosofia e a moral abriram a essa ciência um horizonte novo, e criaram espíritas praticantes; uns ficaram para trás, os outros foram adiante. Quanto mais sublime foi a moral, mais ela fez sobressair as imperfeições daqueles que não quiseram segui-la, como uma luz brilhante faz sobressair as sombras; era um espelho: alguns não quiseram olhá-lo ou, crendo aí reconhecer-se, preferiram jogar pedra em quem o mostrava a eles. Tal é ainda a causa de certas animosidades; mas, fico feliz de dizê-lo, são exceções; algumas pequenas manchas escuras num imenso quadro e que não poderiam alterar-lhe o brilho. Elas pertencem em grande parte ao que se poderia chamar os espíritas de primeira formação; quanto aos que se formaram depois e que se formam a cada dia, a grande maioria aceitou a doutrina precisamente por causa de sua moral e de sua filosofia, por isso se esforçam por praticá-la. Pretender que todos devam ter-se tornado perfeitos, seria desconhecer a natureza da humanidade; mas se não tivessem se despojado senão de algumas partes do velho homem, seria sempre um progresso que se deve levar em conta; somente seriam inescusáveis aos olhos de Deus aqueles que, estando bem e devidamente esclarecidos, não tivessem tirado proveito como podiam; àqueles, certamente, serão pedidas contas severas das quais poderão, assim como temos inúmeros exemplos, sofrer as consequências já neste mundo; porém, ao lado desses, há também muitos nos quais se operou uma verdadeira metamorfose; que encontraram nessa crença a força para vencer inclinações há muito tempo enraizadas, para afastar-se de velhos hábitos, fazer calar os ressentimentos e as inimizades, reaproximar as distâncias sociais. Pedem-se ao Espiritismo milagres: eis os que ele produz.
Assim, pela força das coisas, o Espiritismo terá como consequência inevitável o melhoramento moral; esse melhoramento conduzirá à prática da caridade, e da caridade nascerá o sentimento da fraternidade. Quando os homens estiverem imbuídos dessas ideias, eles conformarão a elas suas instituições, e é assim que trarão naturalmente e sem abalos todas as reformas desejáveis; é a base sobre a qual eles assentarão o edifício social futuro.
Esta transformação é inevitável, porque está de acordo com a lei do progresso; mas se ela seguir apenas a marcha natural das coisas, sua realização pode ser ainda muito longa. Se acreditamos na revelação dos Espíritos, estaria nos desígnios de Deus ativá-la, e estamos nos tempos preditos para isso; a concordância das comunicações dadas a esse respeito é um fato digno de nota; de todas as partes é dito que alcançamos a era nova, e que grandes coisas vão se realizar. No entanto, não se deve crer que o mundo esteja ameaçado por um cataclismo material; escrutando as palavras do Cristo, é evidente que nessa circunstância, como em muitas outras, ele falou de maneira alegórica. A renovação da humanidade, o reino do bem sucedendo ao reino do mal, são coisas bastante grandes que podem se realizar, sem que haja necessidade de englobar o mundo num naufrágio universal, nem de fazer aparecer fenômenos extraordinários, nem ainda derrogar as leis naturais. É sempre nesse sentido que os Espíritos se exprimiram.
Tendo a terra chegado ao tempo marcado para se tornar uma morada feliz, e elevar-se assim na hierarquia dos mundos, basta que Deus não mais permita aos Espíritos imperfeitos se reencarnarem aqui; que afaste aqueles que, por seu orgulho, sua incredulidade, seus maus instintos, numa palavra, seriam um obstáculo ao progresso e perturbariam a boa harmonia, como vós mesmos fazeis numa assembleia em que quereis ter paz e tranquilidade, e de onde afastais aqueles que poderiam trazer a desordem; como são expulsos de um país os malfeitores e relegados a regiões distantes. Que da raça, ou melhor, para nos servirmos das palavras do Cristo, da geração dos Espíritos enviados para a Terra em expiação, aqueles que permaneceram incorrigíveis desapareçam e sejam substituídos por uma geração de Espíritos mais avançados, para o que basta uma geração de homens e a vontade de Deus que pode, por acontecimentos inesperados, embora muito naturais, ativar a partida deles daqui. Se pois, como é dito, a maioria das crianças que nascem hoje pertence à nova geração de Espíritos melhores, e os outros indo embora a cada dia para não mais voltar, é evidente que em determinado tempo pode haver nesse mundo uma renovação completa. O que se tornarão os Espíritos exilados? Irão para mundos inferiores expiar seu endurecimento por longos séculos de terríveis provas, pois também eles são anjos rebeldes, porque desprezaram o poder de Deus, e se revoltaram contra Suas leis que o Cristo viera lembrar-lhes.1
Seja como for, nada se faz bruscamente na natureza; o velho fermento ainda deixará, durante algum tempo, traços que se apagarão pouco a pouco. Quando os Espíritos nos dizem, e eles o dizem em toda parte, que chegamos a esse momento, não crede que vamos ser testemunhas de uma mudança visível; eles entendem que estamos no momento da transição; assistimos à partida dos antigos e à chegada dos novos, que vêm fundar a nova ordem de coisas, ou seja, o reino da justiça e da caridade que é o verdadeiro reino de Deus predito pelos profetas, e cujas vias o Espiritismo vem preparar.
Como vedes, senhores, já estamos bem longe das mesas girantes, e no entanto alguns anos apenas nos separam desse berço do Espiritismo! Todo aquele que tivesse sido então bastante audacioso para predizer o que seria dele hoje, teria passado por insensato até mesmo aos olhos dos adeptos. Vendo uma pequenina semente, quem poderia compreender, se não o tivesse visto, que dali sairá uma árvore imensa? Ao ver um infante nascido num estábulo de um pobre vilarejo da Judeia, quem poderia crer que, sem fausto e sem poder mundano, sua simples voz moveria o mundo, assistido somente por alguns pescadores ignorantes e pobres como ele? Assim ocorre com o Espiritismo que, saído de um humilde e vulgar fenômeno, estende já suas raízes por toda parte, e cujos ramos em breve abrigarão toda a terra. É que as coisas vão depressa quando Deus o quer; e quem não veria aí o dedo de Deus, pois nada acontece sem sua vontade!
Vendo a marcha irresistível das coisas, podeis dizer também, como outrora os Cruzados marchando rumo à conquista da Terra Santa: Deus o quer! mas com a diferença de que eles marchavam com ferro e fogo na mão, enquanto não tendes como arma senão a caridade que, em vez de fazer feridas mortais, derrama um bálsamo salutar nos corações doloridos; com essa arma pacífica, que brilha aos olhos como um raio divino, e não como um ferro mortífero; que semeia a esperança e não o temor, trouxestes de volta ao aprisco da fé, em alguns anos, mais ovelhas desgarradas do que não puderam fazer vários séculos de violência e constrangimento. É com a caridade por guia que o Espiritismo marcha rumo à conquista do mundo.
Será uma quimera, um sonho fantástico cujo quadro vos tracei? Não. A razão, a lógica, a experiência, tudo diz que é uma realidade.
Espíritas! Sois os pioneiros desta grande obra; tornai-vos dignos desta gloriosa missão cujos frutos sereis os primeiros a colher; pregai com palavras, mas sobretudo pregai pelo exemplo; fazei com que ao vos ver não se possa dizer que as máximas que ensinais são palavras vãs em vossa boca. A exemplo dos apóstolos, fazei milagres, Deus vos concedeu esse dom; não milagres para impressionar os sentidos, mas milagres de caridade e de amor; sede bons para vossos irmãos; sede bons para todo mundo; sede bons para vossos inimigos! A exemplo dos apóstolos, expulsai os demônios, tendes esse poder, e eles pululam à vossa volta; são os demônios do orgulho, da ambição, da inveja, do ciúme, da cupidez, da sensualidade que insuflam todas as más paixões e incitam entre vós os pomos da discórdia; expulsai-os de vossos corações, a fim de que tenhais a força para expulsá-los do coração dos outros. Fazei esses milagres, que Deus vos abençoará, e as gerações futuras vos bendirão, como as de hoje bendizem os primeiros cristãos dos quais muitos revivem entre vós para assistir e concorrer ao coroamento da obra do Cristo; fazei esses milagres, e vossos nomes serão inscritos gloriosamente nos anais do Espiritismo; não ofusqueis seu brilho com sentimentos e atos indignos de verdadeiros espíritas, de espíritas cristãos. Retirai o mais cedo possível o que poderia ainda restar em vós do velho fermento; pensai que de um momento para o outro, amanhã talvez, o anjo da morte pode vir bater à vossa porta e dizer-vos: Deus te chama para lhe prestares conta do que fizeste de sua palavra, da palavra de seu Filho que ele te fez repetir por seus bons Espíritos. Estai portanto sempre prontos para partir, e não façais como o viajante imprudente que é pego desprevenido; fazei vossas provisões com antecedência, isto é, provisões de boas obras e de bons sentimentos, pois infeliz daquele que for surpreendido, no momento fatal, com ódio, inveja ou ciúme no coração; seriam os maus Espíritos que o escoltariam, e se alegrariam das desgraças que o aguardam, porque tais desgraças seriam obra deles; vós sabeis, espíritas, quais são essas desgraças: aqueles que as sofrem vêm eles mesmos vos descrever seus sofrimentos. Àqueles, ao contrário, que se apresentarão puros, os bons Espíritos virão estender a mão dizendo-lhes: Irmãos, sede bem-vindos à celeste morada, onde vos aguardam os cânticos de alegria!
Vossos adversários poderão rir de vossas crenças nos Espíritos e em suas manifestações, mas não rirão das qualidades que essas crenças dão; não rirão quando virem inimigos se perdoarem em vez de se odiar, a paz renascer entre afetos divididos, o incrédulo de outrora hoje rezar, o homem violento e colérico tornado doce e pacífico, o devasso tornado decente e bom pai de família, o orgulhoso tornado humilde, o egoísta tornado caridoso; eles não rirão quando virem que não têm mais de recear a vingança de seu inimigo que se tornou Espírita; o rico não rirá quando vir o pobre não mais invejar sua fortuna; o pobre abençoará o rico que se tornou mais humano e mais generoso, em vez de o invejar; os chefes não rirão mais de seus subordinados e não mais os molestarão quando os virem mais escrupulosos e mais conscienciosos no cumprimento de seus deveres; por fim, os senhores incentivarão seus servidores e seus gerentes, quando os virem, sob o império da fé espírita, mais fiéis, mais dedicados e mais sinceros; todos dirão que o Espiritismo é bom para alguma coisa, ainda que só o fosse para salvaguardar seus interesses materiais: pior para eles se não enxergam mais além. Sob o império dessa mesma fé, o militar é mais disciplinado, mais humano, mais fácil de conduzir; tem mais o sentimento do dever, e obedece mais pela razão do que por temor. É o que constatam todos os chefes imbuídos desses princípios, e eles são numerosos; também fazem votos para que nenhum entrave se oponha à propagação dessas ideias entre seus inferiores.
Eis, senhores trocistas, o que produz o Espiritismo, essa utopia do século dezenove, parcialmente ainda, é verdade, mas já se reconhece essa influência, e em breve se compreenderá que se tem tudo a ganhar com a sua promulgação; que sua influência é uma garantia de segurança para as relações sociais, porque ele é o mais poderoso freio oposto às paixões más, às efervescências desordenadas, mostrando o laço de amor e de fraternidade que deve unir o grande ao pequeno e o pequeno ao grande. Fazei portanto, por vosso exemplo, que em breve se possa dizer: Queira Deus que todos os homens sejam espíritas de coração!
Caros irmãos espíritas, venho mostrar-vos a estrada, fazer-vos ver o objetivo. Possam minhas palavras, fracas como são, vos ter feito compreender sua grandeza! Mas outros virão depois de mim que vo-la mostrarão também, e cuja voz mais potente do que a minha terá para as nações o estrondo retumbante da trombeta. Sim, meus irmãos, em breve surgirão entre vós Espíritos, mensageiros de Deus para estabelecer Seu reino na Terra, e vós os reconhecereis por sua sabedoria e pela autoridade de sua linguagem. À voz deles, os incrédulos e os ímpios serão tomados de espanto e de estupor e curvarão a cabeça, pois não ousarão tratá-los de loucos. Pudesse eu, meus irmãos, vos revelar ainda tudo o que nos prepara o futuro! Mas o tempo está próximo em que todos esses mistérios serão desvelados para a confusão dos maus e a glorificação dos bons.
Enquanto ainda é tempo, revesti-vos pois da veste branca; abafai todas as discórdias, porque as discórdias pertencem ao reino do mal, que vai acabar. Pudésseis todos vós confundir-vos numa única e mesma família, e dar-vos do fundo do coração, sem segundas intenções, o nome sagrado de irmãos. Se entre vós houvesse dissidências, causas de antagonismo; se os grupos que devem todos marchar rumo a um objetivo comum estivessem divididos, digo-vos com pesar, sem me preocupar com as causas, sem examinar quem teria cometido as primeiras faltas, eu me colocaria, sem hesitar, do lado daquele em que houvesse mais caridade, ou seja, mais abnegação e verdadeira humildade, pois aquele a quem falta caridade está sempre errado, ainda que tenha razão por um lado, e Deus amaldiçoa aquele que diz a seu irmão: Racca. Os grupos são indivíduos coletivos que devem viver em paz como os indivíduos, se forem verdadeiramente espíritas; são os batalhões da grande falange; ora, o que se tornaria uma falange cujos batalhões estivessem divididos? Aqueles que vissem os outros com olhar ciumento provariam, só por isso, que estão sob uma má influência, pois o Espírito do bem não poderia produzir o mal. Como sabeis, reconhece-se a árvore pelo fruto que carrega: ora, o fruto do orgulho, da inveja e do ciúme é um fruto envenenado que mata aquele que dele se alimenta.
O que digo das dissidências entre os grupos, digo-o igualmente das que podem existir entre indivíduos. Em semelhante circunstância, a opinião das pessoas imparciais é sempre favorável àquele que dá prova de mais grandeza e de generosidade. Ninguém sendo infalível nesse mundo, a indulgência recíproca é uma consequência do princípio de caridade que nos diz para agir para com os outros como gostaríamos que os outros agissem para conosco; ora, sem indulgência não há caridade, sem caridade não há verdadeiro Espírita. A moderação é um dos sinais característicos desse sentimento, como a acrimônia e o rancor são a sua negação; com azedume e espírito vindicativo estragamos as melhores causas, enquanto com a moderação aumentamos o nosso bom direito, se ele estiver do nosso lado, ou o adquirimos se não estiver. Se, pois, eu tivesse que formar uma opinião sobre um desentendimento, preocupar-me-ia menos com a causa do que com as consequências. A causa, sobretudo nas disputas de palavras, pode resultar de um primeiro movimento de que nem sempre se é senhor; a conduta ulterior dos dois adversários resulta da reflexão: eles agem com sangue-frio, e é então que o verdadeiro caráter normal de cada um se apresenta. Má cabeça e bom coração muitas vezes caminham juntos, mas rancor e bom coração são incompatíveis. Minha medida de apreciação seria então a caridade, ou seja, eu observaria aquele que diz menos mal de seu adversário, aquele que é mais moderado nas suas recriminações. É por essa medida que Deus nos julgará, pois ele será indulgente com aquele que tiver sido indulgente, e inflexível com aquele que tiver sido inflexível.
A via traçada pela caridade é clara, infalível e sem equívoco. Podemos defini-la assim: “Sentimento de benevolência, de justiça e de indulgência em relação ao próximo, baseado no que gostaríamos que o próximo fizesse por nós.” Tomando-a por guia, estaremos certos de não nos afastar do caminho reto, daquele que conduz a Deus: todo aquele que quer sincera e seriamente trabalhar no seu melhoramento, deve analisar a caridade em seus mais minuciosos detalhes, e conformar a ela sua conduta, porque ela tem aplicação em todas as circunstâncias da vida, pequenas ou grandes. Estais incertos sobre um partido a tomar no que interessa a outrem? Interrogai a caridade, e ela vos responderá sempre de maneira justa. Infelizmente ouve-se mais frequentemente a voz do egoísmo.
Sondai, pois, os recônditos de vossa alma para arrancar daí os últimos vestígios das más paixões se ainda restarem, e se guardais algum ressentimento contra alguém, apressai-vos a abafá-lo, e dizei-lhe: Irmão, esqueçamos o passado; os maus Espíritos nos tinham dividido, que os bons nos reúnam! Se ele repelir a mão que lhe estendeis, oh! então lamentai-o, porque Deus por sua vez lhe dirá: Por que pedes tu o perdão, tu que não perdoaste? Apressai-vos então, para que não se possa vos aplicar esta sentença fatal: É tarde demais.
Tais são, caros irmãos espíritas, os conselhos que venho vos dar. A confiança que quereis conceder-me é para mim uma garantia de que eles darão seus frutos. Os bons Espíritos que vos assistem vos dizem a cada dia a mesma coisa, mas acreditei útil apresentar seu conjunto para fazer sobressair melhor suas consequências. Portanto, venho em nome deles chamar-vos à prática da grande lei de amor e de fraternidade que deve em pouco tempo reger o mundo e nele fazer reinar a paz e a concórdia, sob o estandarte da caridade para todos, sem acepção de seitas, de castas nem de cores.
Com esse estandarte, o Espiritismo será o traço de união que aproximará os homens divididos pelas crenças e pelos preconceitos mundanos; ele abaixará as mais fortes barreiras que separam os povos: o antagonismo nacional. À sombra dessa bandeira, que será seu ponto de ligação, os homens se habituarão a ver irmãos naqueles em que não viam senão inimigos. Daqui até lá ainda haverá lutas, pois o mal não larga facilmente sua presa, e os interesses materiais são tenazes. Certamente nem todos vós vereis com os olhos do corpo a realização desta obra para a qual haveis concorrido, embora o momento não esteja distante; os primeiros anos do próximo século devem assinalar essa era nova e preparar as vias para o fim deste; todavia gozareis, pela visão do Espírito, do bem que tiverdes feito, como os mártires do cristianismo se regozijaram ao ver os frutos produzidos por seu sangue derramado. Coragem pois, e perseverança; não vos desanimeis com os obstáculos: um campo não se torna fértil sem suor; assim como um pai, em idade avançada, constrói uma casa para seus filhos, pensai que ergueis, para as gerações futuras, um templo à fraternidade universal, e no qual as únicas vítimas imoladas serão o egoísmo, o orgulho e todas as más paixões que ensanguentaram a humanidade.
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1 Vide Revista espírita, Janeiro de 1862, Ensaio sobre a interpretação da doutrina dos Anjos caídos.