Romance espírita pelo Sr. Élie Sauvage, membro da Sociedade dos Homens de Letras.
Para o Espiritismo, o ano de 1867 foi aberto pela publicação de uma obra que de certo modo inaugura um novo caminho aberto pela Doutrina Espírita para literatura. Mirette não é um desses livros em que a ideia espírita é mero acessório, e como que jogada, com essa finalidade, ao acaso da imaginação, sem que a crença venha animá-la e aquecê-la. É essa ideia que constitui sua pedra fundamental, menos pela ação que pelas consequências gerais decorrentes.
Em Espírita, de Théophile Gautier, o fantástico supera de muito o real e o possível, do ponto de vista da doutrina. É menos um romance espírita do que o romance do Espiritismo, e que este não pode aceitar como uma pintura fiel das manifestações. Além disto, o conteúdo filosófico e moral aí é quase nulo. Essa obra não deixou de ser muito útil à vulgarização da ideia, pela autoridade do nome do autor, que lhe soube dar o cunho de seu incontestável talento, e por sua publicação no jornal oficial. Além do mais, era a primeira obra desse gênero de uma real importância, na qual a ideia era tomada a sério.
A obra do Sr. Sauvage é concebida num plano bem diverso. É uma pintura da vida real, onde nada se afasta do possível e da qual o Espiritismo tudo pode aceitar. É uma história simples, ingênua, de um interesse contínuo e tanto mais atraente quanto tudo aí é natural e verossímil. Nela não se encontram situações romanescas, mas cenas enternecedoras, pensamentos elevados, caracteres traçados conforme a Natureza. Nela vemos os mais nobres e puros sentimentos, em luta com o egoísmo e a mais sórdida maldade; a fé lutando contra a incredulidade. O estilo é claro, conciso, sem prolixidade e acessórios inúteis, sem ornamentos supérfluos e sem pretensões ao efeito. Propôs-se o autor, antes de tudo, a fazer um livro moral, e colheu os seus elementos na filosofia espírita e suas consequências, muito mais do que no fato das manifestações. Ele mostra a que elevação de pensamentos conduzem essas crenças. Sobre este ponto, resumimos nossa opinião dizendo que este livro pode ser lido com proveito pela juventude de ambos os sexos, que nele encentrará belos modelos, bons exemplos e úteis instruções, sem prejuízo do proveito e da concordância que dele se pode tirar em qualquer idade. Acrescentaremos que para ter escrito este livro no sentido em que ele escreveu, é preciso estar profundamente penetrado dos princípios da Doutrina.
O autor situa sua ação em 1831. Ele não pode, portanto, falar nominalmente do Espiritismo, nem das obras espíritas atuais. Então teve que remontar seu ponto de partida a Swedenborg. Mas aí tudo está em conformidade com os dados do Espiritismo moderno, que ele estudou com cuidado.
Eis, em duas palavras, o assunto da obra:
Forçado a deixar a França subitamente, durante a revolução, o Conde de Rouville, ao partir para o exílio, tinha confiado uma soma importante e seus títulos de família a um homem com cuja lealdade ele acreditava que podia contar. Esse homem, abusando de sua confiança, apropria-se da soma, com a qual enriquece. Quando o emigrado volta, o depositário declara não conhecê-lo e nega o depósito. O Sr. de Rouville, baldo de todos os recursos por essa infidelidade, morre de desespero, deixando uma filhinha de três anos, chamada Mirette. A criança é recolhida por um velho servidor da família, que a educa como sua filha. Quando tinha apenas dezesseis anos, seu pai adotivo, muito pobre, veio a falecer. Lucien, jovem estudante de direito, alma grande e nobre, que tinha assistido o velho em seus últimos momentos, torna-se o protetor de Mirette, deixada sem apoio e sem abrigo. Ele a faz admitir em casa de sua mãe, rica padeira de coração duro e egoísta. Ora, descobre-se que Lucien é filho do espoliador, que sabendo mais tarde que Mirette é a filha daquele a quem causou a ruína e a morte, cai doente e morre roído de remorsos, nas convulsões de uma horrível agonia. Daí complicações, porque os dois jovens se amam e acabam se casando.
Os principais personagens são: Lucien e Mirette, duas almas de escol; a mãe de Lucien, tipo perfeito do egoísmo, da cupidez, da estreiteza de ideias, em luta com o amor materno; o pai de Lucien, exata personificação da consciência perturbada; uma entregadora de pão, profundamente maldosa e ciumenta; um velho médico, excelente homem, mas incrédulo e trocista; um estudante de medicina, seu aluno, espiritualista, homem de coração e hábil magnetizador; uma sonâmbula muito lúcida, e uma irmã de caridade de ideias amplas e elevadas, modelo típico.
Acerca desta obra ouvimos a seguinte crítica:
A ação começa sem preâmbulo, por um desses casos de manifestações espontâneas, como se veem tantas em nossos dias, e que consistem em batidas nas paredes. Esses ruídos propiciam o encontro dos dois principais personagens da história, Lucien e Mirette, que se desenrola a seguir. Dizem que o autor deveria ter dado uma explicação do fenômeno, para esclarecimento das pessoas estranhas ao Espiritismo, que se acham num ponto de partida que não compreendem. Não compartilhamos desta opinião, porque outro tanto seria preciso dizer das cenas de visões extáticas e de sonambulismo. O autor não quis, e não podia, por tratar-se de um romance, fazer um tratado didático de Espiritismo. Todos os dias escritores apoiam suas concepções em fatos científicos, históricos ou outros, que não podem senão supô-los conhecidos dos leitores, sob pena de transformarem suas obras em enciclopédias. Aos que não os conhecem cabe buscá-los ou pedir uma explicação. O Sr. Sauvage, colocando o seu assunto em 1831, não podia desenvolver teorias que só foram conhecidas vinte anos mais tarde. Aliás, os Espíritos batedores, em nossos dias, têm bastante repercussão, graças mesmo à imprensa hostil, para que poucas pessoas deles não tenham ouvido falar. Esses fatos são mais vulgares hoje do que muitos outros citados diariamente. Ao contrário, o autor nos parece ter realçado o Espiritismo, tomando o fato como suficientemente conhecido para dispensar explicações.
Também não partilhamos da opinião dos que lhe censuram o quadro um pouco familiar e vulgar, a pouca complicação dos efeitos da intriga, numa palavra, por não ter feito uma obra literária mais magistral, de que ele certamente seria capaz. Em nossa opinião, a obra é o que devia ser, para atingir o seu objetivo; não é um monumento que o autor quis construir, mas uma simples e graciosa casinha, onde o coração pudesse repousar. Tal qual é, dirige-se a todo mundo: grandes e pequenos, ricos e proletários, mas sobretudo a uma classe de leitores aos quais teria convindo menos, se estivesse revestida com uma forma mais acadêmica. Pensamos que sua leitura pode ser muito proveitosa para a classe laboriosa, e, sob este ponto de vista, gostaríamos que ela tivesse a mesma popularidade de certos escritos cuja leitura é menos sadia.
As duas passagens seguintes podem dar uma ideia do espírito no qual é concebida a obra. A primeira é uma cena entre Lucien e Mirette, no enterro do pai adotivo desta:
“Meu pobre pai, então não te verei mais! disse Mirette soluçando.
“Mirette, respondeu Lucien com voz suave e grave, os que creem em Deus e na imortalidade da alma humana não devem desolar-se como os infelizes que não têm esperança. Para os verdadeiros cristãos, a morte não existe. Olhai em torno de nós. Estamos sentados entre túmulos, no lugar terrível e fúnebre que a ignorância e o medo chamam de cidade dos mortos. Pois bem! O sol de maio aqui resplandece como no seio dos campos mais risonhos. As árvores, os arbustos e as flores inundam o ar com seus mais doces perfumes; do pássaro ao inseto imperceptível, cada ser da criação lança sua nota nesta grande sinfonia que canta a Deus o hino sublime da vida universal. Dizei-me, não está aí um brilhante protesto contra o nada, contra morte? A morte é uma transformação para a matéria; para os seres bons e inteligentes é uma transfiguração. Vosso pai cumpriu a tarefa que Deus lhe tinha confiado: Deus o chamou a si; que nosso amor egoísta não negue a palma ao mártir, a coroa ao vencedor!.. Mas não creiais que ele vos esqueça. O amor é o laço misterioso que liga todos os mundos. O pai de família, forçado a realizar uma grande viagem, não pensa em seus filhos queridos? Não vela de longe por sua felicidade? Sim, Mirette, que este pensamento vos console; jamais somos órfãos na Terra; para começar, temos Deus, que nos permitiu chamá-lo nosso pai e depois os amigos que nos precederam na vida eterna. ─ Aquele que chorais lá está, eu o vejo... ele vos sorri com uma ternura inefável... ele vos fala... escutai...
“De repente o rosto de Lucien tomou uma expressão extática; seu olhar fixo, seu dedo levantado no ar mostrava alguma coisa no espaço; seu ouvido atento parecia escutar palavras misteriosas.
“Criança, diz ele, com uma voz que não era mais a sua, por que fixar o olhar velado de lágrimas neste canto de terra onde depositaram meus despojos mortais? Ergue os olhos para o Céu; é lá que o Espírito, purificado pelo sofrimento, pelo amor e pela prece, se evola para o objeto de suas sublimes aspirações! O que importa à borboleta que ao sol distende as suas asas radiosas, que lhe importam os restos de sua grosseira carcaça? A poeira volta à poeira, a centelha sobe para o seu divino foco. Mas o Espírito deve passar por terríveis provas antes de receber sua coroa. A Terra sobre a qual se agita o formigueiro humano é um lugar de expiação e de preparação para a vida bem-aventurada. Grandes lutas te esperam, pobre criança, mas tem confiança. Deus e os bons Espíritos não te abandonarão. Fé, esperança, amor, que seja esta a tua divisa. Adeus.”
A obra termina pelo seguinte relato de uma excursão extática dos dois jovens, então casados:
“Após uma viagem, cuja duração não puderam apreciar, os dois navegantes aéreos abordaram uma terra desconhecida e maravilhosa, onde tudo era luz, harmonia e perfume, onde a vegetação era tão bela que diferia tanto da nossa quanto a flora tropical difere da flora da Groenlândia e das terras austrais. Os seres que habitavam esse mundo perdido no meio dos mundos se pareciam muito com a ideia que aqui fazemos dos anjos. Seus corpos leves e transparentes nada tinham do nosso grosseiro envoltório terreno; seus rostos irradiavam inteligência e amor. Uns repousavam à sombra de árvores carregadas de frutos e flores, outros passeavam como essas sombras bem-aventuradas que nos mostra Virgílio na sua deslumbrante descrição dos Campos Elíseos. Os dois personagens que Lucien já tinha visto várias vezes em suas visões precedentes avançaram com os braços estendidos para os dois viajantes. O sorriso com que os abraçaram os encheu de uma alegria celeste. Aquele que tinha sido o pai adotivo de Mirette lhe disse com uma doçura inefável: “Meus caros filhos, vossas preces e vossas boas obras encontraram graça diante de Deus. Ele tocou a alma do culpado e a reenvia à vida terrestre para expiar suas faltas e se purificar por novas provas, porque Deus não castiga eternamente e sua justiça é sempre temperada pela misericórdia.”
Eis agora, sobre esta obra, a opinião dos Espíritos, dada na Sociedade de Paris, na sessão em que foi feito o seu relato:
(Sociedade de Paris, 4 de janeiro de 1867 - Médium: Sr. Desliens)
A cada dia a crença destaca das ideias adversas um espírito irresoluto; a cada dia novos adeptos obscuros ou ilustres vêm abrigar-se sob sua bandeira; os fatos se multiplicam e a multidão reflete. Depois, os medrosos agarram sua coragem com as duas mãos e gritam: Avante! com toda a força dos pulmões. Os homens sérios trabalham, e a ciência moral ou material, os romances e as novelas deixam penetrar os princípios novos em páginas eloquentes. Quantos espíritas que não sabem que e são espíritas existem entre os espiritualistas modernos! Quantas publicações às quais não falta senão uma palavra para serem apontadas à atenção pública como emanando de uma fonte espírita!
O ano de 1866 apresenta a filosofia nova sob todas as suas formas; mas é ainda a haste verde que encerra a espiga de trigo e que para subir espera que o calor da primavera a tenha amadurecido e feito entreabrir. 1866 preparou, 1867 amadurecerá e realizará. O ano se abre sob os auspícios de Mirette e não terminará sem ver aparecerem novas publicações do mesmo gênero e mais sérias ainda, de tal forma que o romance tornar-se-á filosofia e a filosofia far-se-á história.
O Espiritismo não será transformado numa crença ignorada e aceita apenas por alguns cérebros supostamente doentes; será uma filosofia admitida ao banquete da inteligência, uma ideia nova, com assento ao lado das ideias progressivas que caracterizam a segunda metade do século dezenove. Assim, felicitamos vivamente aquele que soube, como pioneiro, pôr de lado todo falso respeito humano, para arvorar franca e claramente sua crença íntima.
Dr. Morel Lavallée.