O ESPIRITISMO INDEPENDENTE
(Revista Espírita, abril de 1866)
Uma carta que nos foi escrita há algum tempo falava do projeto de dar a uma publicação periódica o título de Journal du Spiritisme Indépendant. Evidentemente sendo essa ideia o corolário da do Espiritismo sem os Espíritos, vamos tentar pôr a questão em seu verdadeiro terreno.
Para começar, o que é o Espiritismo independente? Independente de quê? Uma outra carta o diz claramente: É o Espiritismo liberto, não só da tutela dos Espíritos, mas de toda direção ou supremacia pessoal; de toda subordinação às instruções de um chefe, cuja opinião não pode fazer lei, porque não é infalível.
Isto é a coisa mais fácil do mundo, pois existe de fato, considerando-se que o Espiritismo, proclamando a absoluta liberdade de consciência, não admite nenhum constrangimento em matéria de crença, e que ele jamais contestou a ninguém o direito de crer à sua maneira em matéria de Espiritismo, como em qualquer outra coisa. Deste ponto de vista nós mesmos nos achamos perfeitamente independente, nós próprio, e pretendemos aproveitar esta independência. Se há subordinação, ela é, pois, inteiramente voluntária; mais ainda, não é subordinação a um homem, mas a uma ideia que é adotada porque convém; que sobrevive ao homem se é justa; que cai com ele ou antes dele, se é falsa.
Para nos libertarmos de ideias alheias, necessariamente devemos ter ideias próprias; naturalmente procuramos fazer que essas ideias prevaleçam, sem o que seriam guardadas para nós próprios; nós as proclamamos, as sustentamos, as defendemos, porque cremos que são a expressão da verdade, porque admitimos a boa-fé, e não o único desejo de derrubar o que existe; o objetivo é o de aliciar o maior número possível de partidários, e eis que aquele que não admite chefe se faz chefe de seita, buscando subordinar os outros às suas próprias ideias. Aquele que diz, por exemplo: “Não devemos mais receber instruções dos Espíritos”, não emite um princípio absoluto? Ele não exerce uma pressão sobre os que as querem, dissuadindo-os de recebê-las? Se ele funda uma reunião sobre essa base, deve excluir os partidários das comunicações, porque, se estes últimos constituíssem maioria, transformá-la-iam em lei. Se os admite e recusa atender aos desejos deles, atenta contra a liberdade que eles têm de reclamar. Se inscrever em seu programa: “Aqui não se dá a palavra aos Espíritos”, então, aqueles que desejam ouvi-los não ousarão contestar a ordem e ali não comparecerão.
Sempre dissemos que uma condição essencial de toda reunião espírita é a homogeneidade, sem o que haverá dissensão. Quem fundasse uma reunião com base na rejeição das comunicações estaria no seu direito; se aí só admitir os que pensam como ele, faz bem, mas não tem o direito de dizer que, porque ele não quer, ninguém deve querer. Certamente ele é livre para agir como entender, mas se quer a liberdade para si, deve querê-la para os outros. Considerando-se que ele defende suas ideias e critica as dos outros, se for consequente consigo mesmo, não deve achar mau que os outros defendam as próprias e critiquem as dele.
Em geral, esquecemos que acima da autoridade de um homem há outra à qual quem quer que se faça representante de uma ideia não pode subtrair-se: é a de todo mundo. A opinião geral é a suprema jurisdição, que sanciona ou derruba o edifício dos sistemas; ninguém pode livrar-se da subordinação que ela impõe. Esta lei não é menos onipotente no Espiritismo. Quem quer que fira o sentimento da maioria e a abandone, deve esperar ser por ela abandonado. Aí está a causa do insucesso de certas teorias e de certas publicações, abstração feita do mérito intrínseco destas últimas, sobre o qual, por vezes, não se tem ilusão.
Não se deve perder de vista que o Espiritismo não está enfeudado num indivíduo, nem nalguns indivíduos, nem num círculo, nem mesmo numa cidade, mas que seus representantes estão no mundo inteiro e que entre eles há uma opinião dominante e profundamente acreditada. Julgar-se forte contra todos, porque se tem o apoio de sua roda, é expor-se a grandes decepções.
Há duas partes no Espiritismo: a dos fatos materiais e a de suas consequências morais. A primeira é necessária como prova da existência dos Espíritos, e foi por ela que os Espíritos começaram; a segunda, que dela decorre, é a única que pode levar à transformação da Humanidade pelo melhoramento individual. O melhoramento é, pois, o objetivo essencial do Espiritismo. É para ele que deve tender todo espírita sério. Tendo deduzido essas consequências das instruções dos Espíritos, definimos os deveres que essa crença impõe. O primeiro inscrevemos na bandeira do Espiritismo: Fora da caridade não há salvação, máxima aclamada, em seu aparecimento, como o sol do futuro, que em breve fez a volta ao mundo, tornando-se a palavra de ligação de todos quantos veem no Espiritismo algo mais que um fato material. Por toda parte ela foi acolhida como o símbolo da fraternidade universal, como uma garantia de segurança nas relações sociais, como a aurora de uma nova era, onde devem extinguir-se os ódios e as dissensões. Compreendemos tão bem a sua importância, que já lhe colhemos os frutos; entre os que a tornaram uma regra de conduta, reinam a simpatia e a confiança que fazem o encanto da vida social; em todo espírita de coração, vemos um irmão em cuja companhia nos sentimos felizes, porque sabemos que aquele que pratica a caridade não pode fazer nem querer o mal.
Foi, então, por nossa autoridade privada que promulgamos esta máxima? E se o tivéssemos feito, quem poderia considerá-la má? Mas não; ela decorre do ensino dos Espíritos, os quais a colheram nos do Cristo, onde ela está escrita com todas as letras, como pedra angular do edifício cristão, mas onde ficou enterrada durante dezoito séculos. O egoísmo dos homens cuidava em não fazê-la sair do esquecimento para expô-la à luz plena, porque teria sido pronunciar sua própria condenação; eles preferiram buscar sua própria salvação em práticas mais cômodas e menos aborrecidas. Entretanto, todo mundo havia lido e relido o Evangelho e, com pouquíssimas exceções, ninguém tinha visto esta grande verdade relegada a segundo plano. Ora, eis que, pelo ensino dos Espíritos, ela ficou imediatamente conhecida e compreendida por todos. Quantas outras verdades o Evangelho encerra, e que surgirão em seu devido tempo! (O Evangelho segundo o Espiritismo, Cap. XV).
Inscrevendo no frontispício do Espiritismo a suprema lei do Cristo, nós abrimos o caminho para o Espiritismo cristão; assim, dedicamo-nos a desenvolver os seus princípios, bem como os caracteres do verdadeiro espírita, sob esse ponto de vista.
Se outros puderem fazer melhor do que nós, não iremos contra, porque jamais dissemos: “Fora de nós não há verdade.” Nossas instruções, pois, são para os que as acham boas; elas são aceitas livremente e sem constrangimento; nós traçamos uma rota e a segue quem quer; damos conselhos aos que no-los pedem e não aos que julgam deles não precisar; não damos ordens a ninguém, pois não temos qualidade para tanto.
Quanto à supremacia, ela é toda moral e na adesão dos que partilham de nossa maneira de ver; como não estamos investidos, mesmo por aqueles, de nenhum poder oficial, não solicitamos nem reivindicamos nenhum privilégio; não nos conferimos nenhum título, e o único que tomaríamos com os partidários de nossas ideias é o de irmão em crença. Se eles nos consideram como seu chefe, é por força da posição que nos dão os nossos trabalhos, e não em virtude de uma decisão qualquer. Nossa posição é aquela que qualquer um poderia tomar antes de nós; nosso direito é o que tem todo mundo de trabalhar como entende e de correr o risco do julgamento do público.
De que autoridade incômoda entendem libertar-se os que querem o Espiritismo independente, porquanto não há nem poder constituído nem hierarquia fechando a porta a quem quer que seja, de vez que não temos sobre eles nenhuma jurisdição e que se lhes agrada afastar-se de nossa rota, ninguém poderá constrangê-los a aí entrar? Algum dia nos fizemos passar por profeta ou messias? Levariam eles a sério os títulos de sumo sacerdote, de soberano pontífice, mesmo de papa, com que a crítica houve por bem nos gratificar? Não só jamais os tomamos mas os espíritas jamais no-los deram. ─ Há ascendente em nossos escritos? O campo lhes está aberto, como a nós, para cativarem as simpatias do público. Se há pressão, ela não vem de nós, mas da opinião geral, que põe o seu veto naquilo que lhe não convém, e que sofre, ela própria, o ascendente do ensino geral dos Espíritos. É, pois, a estes últimos que se deve atribuir, em definitivo, o estado de coisas, e é talvez precisamente isso o que faz com que não queiram mais escutá-los. ─ Há instruções que nós damos? Mas ninguém é forçado a se submeter a elas. ─ Podem eles lamentar-se de nossa censura? Jamais citamos pessoas, a não ser quando devemos elogiar, e nossas instruções são dadas de forma geral, como desenvolvimento de nossos princípios, para uso de todos. Por outro lado, se elas são más, se nossas teorias são falsas, em que isto pode ofuscá-los? O ridículo, se ridículo há, será para nós. Têm eles em tal monta os interesses do Espiritismo que temem vê-los periclitar em nossas mãos? ─ Somos muito absoluto em nossas ideias? Somos um cabeça-dura com quem nada se pode fazer? Ah! Meu Deus! Cada um tem os seus pequenos defeitos; nós temos o de não pensar ora branco, ora preto; temos uma linha traçada e dela não nos desviamos para agradar a ninguém. É provável que sejamos assim até o fim.
É a nossa riqueza que eles invejam? Onde estão os castelos, as equipagens e os nossos lacaios? Certamente, se tivéssemos a fortuna que nos atribuem, não seria enquanto dormíamos que ela teria vindo, e muita gente amontoa milhões num labor menos rude. ─ Que fazemos do dinheiro que ganhamos? Como não pedimos contas a ninguém, a ninguém temos que dá-las; o que é certo é que ele não serve para os nossos prazeres. Quanto a empregá-lo para sustentar agentes e espiões, devolvemos a calúnia à sua fonte. Temos que nos ocupar de coisas mais importantes do que saber o que fazem estes ou aqueles. Se fazem bem, não devem temer qualquer investigação; se fazem mal, isso é problema deles. Se há os que ambicionam a nossa posição, é no interesse do Espiritismo ou no seu próprio? Que a tomem, pois, com todos os seus encargos, e provavelmente não acharão que seja uma sinecura tão agradável quanto supõem. Se acham que conduzimos mal o barco, quem os impedia de tomar o leme antes de nós? E quem os impede ainda hoje? ─ Lamentam-se de nossas restrições para fazermos partidários? Nós esperamos que venham a nós e não vamos procurar ninguém; nem mesmo corremos atrás dos que nos deixam, porque sabemos que não podem entravar a marcha das coisas; sua personalidade se apaga diante do conjunto. Por outro lado, não somos bastante vão para crer que seja por nossa pessoa que se ligam a nós; evidentemente é pela ideia de que somos o representante. É, pois, a essa ideia que reportamos os testemunhos de simpatia que têm a bondade de nos dar.
Em resumo, o Espiritismo independente seria aos nossos olhos uma insensatez, porque a independência existe de fato e de direito, e não há disciplina imposta a ninguém. O campo de exploração está aberto a todos; o juiz supremo do torneio é o público; a palma é para quem sabe conquistá-la. Tanto pior para os que caem antes de atingir a meta.
Falar dessas opiniões divergentes que em definitivo se reduzem a algumas individualidades e em parte alguma formam corpo, não será, talvez, perguntarão algumas pessoas, ligar a isto muita importância, amedrontar os adeptos fazendo-os crer em cisões mais profundas do que realmente são? Não é, também, fornecer armas aos inimigos do Espiritismo?
É precisamente para prevenir esses inconvenientes que disto falamos. Uma explicação clara e categórica, que reduz a questão ao seu justo valor, é bem mais própria a assegurar do que a espantar os adeptos. Eles sabem como comportar-se, e aí encontram argumentos para a réplica. Quanto aos adversários, já exploraram o fato muitas vezes, e porque exageram o seu alcance, é útil mostrar-lhes o que a coisa é. Para mais ampla resposta, remetemos ao artigo “Partida de um adversário do Espiritismo para o mundo dos Espíritos”, da Revista de outubro de 1865.